sexta-feira, 30 de abril de 2010

E os direitos da Igreja?

Poe Rafael Vitola Brodbeck, em 23 de setembro de 2005


Chega a ser curioso o pensamento de alguns partidários de idéias moralmente liberais, como o aborto, a eutanásia – em voga com o caso de Jeson, o pai que quer a morte de seu filho, Jhéck –, o casamento homossexual etc. Sustentam suas posições, reverberam argumentações, organizam movimentos para defendê-las, procuram captar adeptos, chamam a atenção da mídia para seus projetos, montam passeatas, pressionam aqui e ali, enfim, tornam público o que pensam e ninguém lhes nega o direito de fazê-lo.

Agora, esses mesmos pró-aborto, pró-eutanásia, pró-gay, e pró um monte de outras coisas, reclamam dos que se entrincheiram do lado oposto, mas de um modo tão radical que parecem negar a estes últimos a liberdade de expressarem o que entendem ser correto.

Caso emblemático é o do jornalista André Petry, conhecido escrevinhador que não cansa de dirigir sua coluna semanal em Veja atacando a doutrina católica. O grau do ódio que Petry destila contra a Igreja beira à obsessão. Só ela explica um sujeito dedicar-se quase religiosamente a combater uma idéia que não a sua com a virulência com que faz, sem ao menos respeitar o adversário. Que Petry não compartilhe dos dogmas cristãos, compreende-se; o que me intriga é a hostilidade de seus comentários não à doutrina, senão às pessoas. O alvo do colunista não é a idéia, mas seres humanos que a professam. E mais: descontente com somente desmerecer a Igreja, parte para a apologia de uma tese absurdamente descabida, a de que o catolicismo, simplesmente porque é um conjunto doutrinário que não o seu, deve ser sumariamente proibido de manifestar-se sobre questões relevantes.

Em recente artigo, intitulado “Deixem Jeson em paz”, André Petry tacha a prática da Igreja de “espécie de fascismo divinizado”. Diz que a Igreja Católica tem a tendência de “sempre pressionar” para defender o que o pensa.

Ora, quem é favorável ao aborto pode afirmar isso sem nenhum receio. Muitos irão discordar, alguns dos que discordarem poderão reproduzir suas razões até com certa dose de veemência – entre os quais me incluo, evidentemente –, mas creio que, em geral, por mais que se odeie o aborto e procure-se combater sua prática, respeitar-se-á a pessoa em si que defenda tal crime – salvo razões especiais que justifiquem uma crítica mais acirrada ao próprio indivíduo. Do mesmo modo, quem é favorável à eutanásia, ao “casamento” de homossexuais, à adoção de crianças por pares sodomitas, ao suicídio assistido, goza, a partir da admissão das chamadas liberdades modernas, no mínimo, da tolerância social à sua cartilha.

O mesmo direito de expressão, entretanto, é negado pelo senhor Petry – e, com ele, por outros laicistas – à Igreja. O movimento pró-eutanásia pode dar sua opinião, armar seu circo midiático, introduzir poderosos lobbies internacionais no Parlamento, movimentar deputados simpáticos a seus postulados, escrever artigos jornalísticos sobre o tema, promover simpósios e seminários para convencer os demais da legitimidade da interrupção da vida por motivos “humanitários” etc. Só a Igreja, na estreita visão de Petry, não pode dizer o que pensa. Só a Igreja não pode trabalhar para convencer os demais das suas idéias. Apenas os pró-eutanásia têm esse direito. A Igreja não. Os católicos não fazem parte da nação brasileira? Por que, então, eles não podem expressar suas opiniões sobre tais assuntos?

Não quer a Igreja obrigar os de fora de seu grêmio à aceitação de seu catecismo pela força, nem que todos sejam contrários à eutanásia. O que ela deseja, e isso amparada até pelo constitucional direito de expressão, é tornar público o que pensa, e, mediante essa ação, defender a vida dos pacientes terminais, católicos e não-católicos.


(Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4121)

Civilização e barbárie

por Ronaldo Pereira Lima em 08 de setembro de 2004



“Nuevo bárbaro, retrasado con respecto a su época, arcaico y primitivo en comparación con la terrible actualidad de sus problemas. Esto nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también - el ingeniero, el médico, el abogado, el científico”.

(José Ortega y Gasset - Misión de la Universidad)


O problema capital da nossa época, como talvez de todas as eras, não é de ordem puramente política ou econômica, mas intelectual. Um dos nossos graves enganos é não perceber a conexão sempre existente entre as ações e os pensamentos dos homens. E neste mundo cada vez mais segregador das diferenças, o pensador, ao nascer, isto é, ao ter a consciência mais clara das coisas, sente-se deslocado e incapaz de continuar sendo o que é. Alguns, antevendo que só poderão sobreviver como lacaios subservientes da ordem estabelecida, refugiam-se na zona reservada aos medíocres e passarão a vida repetindo os lugares-comuns, as idéias pré-concebidas, os slogans políticos da moda, os juízos acríticos. Outros, mais corajosos, mesmo com a atroz consciência de serem os únicos a enxergarem em uma terra de cegos, tentarão mostrar todos os mecanismos sutis de escravidão. Os primeiros, crendo-se artífices de um mundo novo, criarão idéias torpes e levianas, sem ligação com a realidade. Pensam que é mais importante escrever a ferro e fogo os seus nomes na história do que compreendê-la; para eles destruir é criar. E toda ação é justificável à luz de procedimentos verbais. Agir é mais importante do que pensar. Estes são os novos bárbaros caracterizados por Gasset, que ao encontrarem o seu lugar confortável no grupo dos “empreendedores” tentarão esmagar as dissidências, reduzindo-as a um som que, no vácuo, não é propagado para os ouvidos de ninguém. Se não tivessem perdido há muito tempo a percepção da realidade, saberiam que aqueles que erguem campos de concentração contra pensamentos “perigosos”, estarão prontos a erigí-los também sobre a terra. Totalitarismo intelectual de um lado, social e político de outro, estão intrinsecamente unidos.

Das cátedras universitárias aos palácios de governo, dos mosteiros às escolas, o alicerce sobre o qual o ocidente se consolidou (cristianismo, pensamento racional e lúcido, artes) parece estar em ruínas. Por isso a distinção entre civilização e barbárie é, atualmente, inútil. Não há mais bárbaros a forçar os portões, eles já nos dominaram.

Este fenômeno pode ser percebido também na degradação da linguagem, que é um dos sinais mais evidentes de que uma sociedade escolheu voluntariamente o suicídio do pensamento. Aqueles que deveriam preservá-la das massificações estúpidas são, na verdade, os primeiros a promovê-las. Hoje, o nível da linguagem escrita ou falada, entre professores universitários, jornalistas, ou “escritores”, chegou aos limites intoleráveis vizinhos do analfabetismo. Em seus textos é impossível ver a continuidade, que seria natural, de um idioma que engendrou Camões e Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Olavo Bilac, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Assim, quando surge um poeta excepcional como Bruno Tolentino, que domina com delicada maestria os recursos da língua portuguesa, é taxado de beletrista e antiquado. Eu, de minha parte, jamais esquecerei o sexteto inicial de um de seus poemas perfeitos, “O Espectro”: “Não há como agarrar-te à natureza/ quando a asa da noite baixa e faz/ a sombra sobre a acha, a lenha presa/ à luz da labareda que a desfaz; /morres despreparado ou morres bem, /mas passas pela cinza, meu rapaz”. Quantos ditos “intelectuais” não preferem a esterilidade do Concretismo à beleza e significação destes versos?

É este outro obstáculo central de nosso tempo: estamos perdendo a capacidade mais elementar de comunicação. As pessoas estão divididas entre aquelas que falam e compreendem apenas um dialeto dramaticamente empobrecido e os poucos capazes de compreender o que falam e escrevem, em um idioma que a cada dia parece impenetrável. Entre estes dois grupos há uma cisão profunda.

No futuro, caso haja alguém que pense, se um historiador decidir estudar as idéias centrais desta época em que vivemos, se espantará ao ver tantos “pensadores” e “especialistas” e tão poucas reflexões verdadeiras, fruto da avaliação competente e honesta dos fatos. Em seu lugar, temos apenas indivíduos que, movidos por ideologias perversas e pueris, a beijar a face do líder do partido, se esquecem do próprio mecanismo da história que os engendra. Se o tempo os criou, ele os destruirá. Amém.

LAICIDADE E LAICISMO NÃO SÃO A MESMA COISA

Por Cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano



É necessário diferenciar o laicismo, como privatização do religioso e exclusão da vida pública, da laicidade, que supõe a separação necessária entre a Igreja e o Estado, assumindo o religioso como parte da esfera social.

A Constituição da Itália, por exemplo, está baseada no princípio da laicidade. Mas laicidade entendida no sentido anglo-saxônico e não no francês, que fez da França da terceira República um modelo de comportamento antireligioso.

Este princípio precisa ser aprofundado. Há elementos que auguram uma evolução daquela rígida laicité. Junto ao modelo francês de laicidade, está o anglo-saxão, que mostra outra aproximação do fato religioso.

Enquanto muitos pensadores expressam um conceito de laicidade aberto ao diálogo e à confrontação construtiva, alguns meios de comunicação expressam uma laicidade cultural definida por oposição ao fato religioso (cristão), assumida como modelo de uma laicidade política que parte do critério de exclusão do religioso.

Habermas - Houve um diálogo entre o então cardeal Joseph Ratzinger e o filósofo Jürgen Habermas no qual se concluiu que “uma autêntica democracia leiga permite às instituições religiosas que publiquem suas mensagens para poder oferecer aos cidadãos uma matéria de reflexão de forma equânime”.

Impedir as Igrejas de mostrarem sua postura sobre qualquer tema não é um ato de laicidade, mas de ostracismo para um sistema de valores, só porque este não encaixa dentro da cultura dominante.

Alguns defensores da laicidade crêem que não devem existir valores absolutos, porque sua existência pressuporá automaticamente a falta de laicidade. Habermas, ao contrário, afirma que para salvar-se do risco do relativismo radical e do totalitarismo ideológico, são necessários uns princípios absolutos, o ‘mínimo comum ético’.

A tarefa de qualquer pessoa que tenha um sistema forte de valores, seja católico ou de outra confissão ou cultura é a de “realizar o esforço de traduzir seus próprios valores à ‘linguagem universal’ do debate democrático”.


Fonte: Missão Portas Abertas

(Disponível em: http://www.msevangelico.com.br/noticias.php?CD=9281)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Natal não é para os covardes

Por Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 22 de dezembro de 2005


Na constituição americana não há nenhum “muro de separação” entre religião e Estado. Quando Thomas Jefferson criou essa expressão, foi para proteger as igrejas contra o Estado. É só num mundo pós-orwelliano que ela pode ser usada como pretexto para legitimar a repressão estatal da religião.

Mas o confinamento mesmo de Deus na esfera “religiosa”, Sua exclusão dos debates científicos e filosóficos, que hoje até mesmo os religiosos aceitam como cláusula pétrea da ordem pública, já é uma herança mórbida da estupidez iluminista. O “muro de separação” entre conhecimento e fé é uma farsa kantiana erguida entre dois estereótipos.

Afinal, por que um sujeito tem fé na Bíblia? Tem porque acha que ela é a Palavra de Deus. Mas por que ele acha que ela é a palavra de Deus? É porque tem fé nela? Esse círculo vicioso exigiria uma capacidade de aposta no escuro que transcende os recursos da média humana. A fé não surge do nada, muito menos da própria fé. É preciso um indício, um sinal, um motivo racionalmente aceitável para acender na alma a chama da confiança em Deus. A definição mesma da “fé” como crença numa doutrina é perversão do sentido da palavra.

A doutrina cristã formou-se ao longo dos séculos. Os primeiros fiéis confiaram em Jesus antes de saber nada a respeito dela. Não acreditavam numa doutrina, confiavam num homem. E por que confiavam nele? Ele próprio explicou isso. Quando João Batista, da cadeia, manda perguntar se Ele é o enviado de Deus ou se seria preciso esperar por outro, Jesus não responde com nenhuma doutrina, mas com fatos: “ Vão e contem a João as coisas que vocês ouvem e vêem: os cegos enxergam, e os paralíticos andam; os leprosos ficam limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e os pobres recebem boas notícias. E bem-aventurado é aquele que não se ofende comigo .” O que esses versículos ensinam é que a fé é apenas a confiança em que Aquele que devolveu a vida a alguns mortos pode devolvê-la a muitos mais. É um simples raciocínio indutivo, um ato da inteligência racional fundado no conhecimento dos fatos e não uma aposta no escuro. A única diferença entre ele e qualquer outro raciocínio indutivo é que a conclusão a que ele conduz traz em si uma esperança tão luminosa que toda a tristeza e o negativismo acumulados na alma se recusam a aceitá-la.

A alma prefere apegar-se à tristeza e ao negativismo porque são seus velhos conhecidos. São a segurança da depressão rotineira contra o apelo da razão à ousadia da confiança. O que se opõe à fé não é a razão, é a covardia. Para legitimar essa covardia ergueram-se masmorras de pseudo-argumentos. No fundo delas, o leproso lambe suas chagas, o cego adora sua cegueira, o paralítico celebra a impossibilidade de caminhar. Os pobres, imaginando-se reis e principes, festejam a rejeição da boa notícia. Orgulhosos da sua impotência, adornam com o nome de “ciência” a teimosia de negar os fatos.

Mas seu exemplo não frutifica. Setenta e cinco por cento dos médicos americanos acreditam em curas miraculosas. Acreditam não só porque as vêem, dia após dia, mas porque sabem ou ao menos pressentem que atribui-las à auto-sugestão ou à coincidência seria destruir, no ato, a possibilidade mesma da pesquisa científica em medicina, que se baseia inteiramente no pressuposto de que auto-sugestão e coincidência não têm um poder maior que a intervenção terapêutica fundada no conhecimento racional das causas.

O maior escândalo intelectual de todos os tempos é a fraude constitutiva da modernidade, que, excluindo do exame todos os fatos que não tenham uma explicação materialista, conclui que todos os fatos têm uma explicação materialista.

A dose de miséria mental em que um sujeito precisa estar mergulhado para gostar desse lixo não é pequena. O Natal é o lembrete cíclico de que esse destino não é obrigatório, de que existe a esperança racional de alguma coisa melhor. Por isso há quem deseje eliminá-lo: para que o chamado da esperança não fira o orgulho dos covardes.

O imbecil juvenil

Por Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 3 abr. 1998



Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune: aquela que celebra a juventude como uma época de rebeldia, de independência, de amor à liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem mesmo quando, jovem eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde cedo me impressionaram muito fundo, na conduta de meus companheiros de geração, o espírito de rebanho, o temor do isolamento, a subserviência à voz corrente, a ânsia de sentir-se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos bacanas.

O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores, mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para ajudá-lo a vencer.

Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo, essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir. É dos companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um confronto com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe provações e exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num exame que lhe exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos caprichos da maioria - a supressão, em suma, da personalidade.

É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o ingresso custa caro. O candidato deve, desde logo, aprender todo um vocabulário de palavras, de gestos, de olhares, todo um código de senhas e símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita, devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a imitação - literal, servil e sem questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda velocidade o motor de todos os desvarios humanos: o desejo mimético de que fala René Girard, onde o objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um outro, que Girard denomina o mediador.

Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de transfigurar cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde, então, se voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa? A família surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades da horda que tudo lhe exige.

Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama.

Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e o não-ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre a inversão completa da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde que a covardia dos adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar, esteve sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do século: nazismo, fascismo, comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas. São sempre os jovens que estão um passo à frente na direção do pior.


Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo velho e cansado, que já não tem futuro algum.

Se você ainda quer ser um estudante sério...

Por Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de fevereiro de 2006


“A tragédia do estudante sério no Brasil” resultou em tantas cartas, que acho melhor completar, com algumas dicas baseadas na experiência pessoal, as indicações de estudo que dei no final do artigo.

Começo com um exemplo casual.

Outro dia recebi de amigos a cópia de uma mensagem interessantíssima, postada em algum site da internet por uma senhorita, aparentemente culta e universitária, que, indecisa entre me admirar e me detestar, exigia uma explicação para o fato de eu acertar tantas previsões ao longo de quase duas décadas, apostando quase sempre no contrário do que anunciava a opinião geral dos bem-pensantes. No entender da remetente, bem como de outros participantes do debate, a hipótese mais plausível era a de eu ser um agente da CIA, conectado portanto a uma rede de informantes secretos espalhados por toda parte...

Guardei a mensagem com o carinho historiográfico que merece um eloqüente sinal dos tempos.

Que época mais adorável, esta, em que o sujeito não é cobrado por seus erros, mas por seus acertos! Se o normal é errar sempre, para que serviriam então os milhares de cientistas sociais, historiadores, jornalistas, economistas e doutores em filosofia que as universidades, sustentadas pelo trabalho suado de milhões de contribuintes que jamais as freqüentaram, despejam anualmente no mercado da tagarelice nacional? Resposta: não servem para entender o mundo, mas para transformá-lo. Não podendo, porém, conhecê-lo, já que não acreditam em verdade objetiva, levam-no sempre num rumo diferente do que pretendiam, sentindo-se -- por isso mesmo, raios! -- inocentes dos resultados monstruosos que produzem e sempre merecedores de um redobrado crédito de confiança para começar tudo de novo e de novo e de novo. A revolução, afinal, não seria revolucionária se não revolucionasse a si mesma e à sua própria história, mudando de identidade após cada novo crime e cada novo fracasso e não tendo satisfações a prestar senão a um futuro que, quando chega, já não é mais futuro e não tem portanto qualquer autoridade para cobrá-la do que quer que seja. Tal é, brutalmente resumida mas nem um pouco deformada, a essência da mentalidade que se pode adquirir em qualquer universidade deste país e em muitas do exterior. Equivale a um atestado de impecabilidade congênita, que confere o direito à estupidez laureada, ao amor-próprio ilimitado e ao crime inocente. Não espanta que tantos a desejem, mesmo sabendo que a remuneração dos ofícios universitários já não é lá essas coisas. Aliás, ganhar abaixo do que desejam reforça ainda o seu sentimento de méritos incalculáveis e sua revolta contra a malvada sociedade capitalista que não recompensa adequadamente as pessoas empenhadas em destruí-la.

É natural que, num ambiente assim formado, o sujeito acertar previsões políticas em série deva ser mesmo uma coisa muito esquisita, muito suspeita, denotando poderes demoníacos ou no mínimo algum truque sujo. Entendo mesmo que, no desespero, alguns apelem até à suposição “CIA”, sem ter em conta que essa entidade, há pelo menos quarenta anos, tem se especializado mais é em produzir informações erradas.

A hipótese de que exista uma realidade objetiva da vida política, de que ela possa ser conhecida, de que o indivíduo em questão tenha estudado muito com o objetivo de conhecê-la e de que depois de quatro décadas de esforço ele tenha conseguido montar um conjunto de critérios científicos razoáveis para fazer previsões acertadas dentro de um quadro definido de possibilidades, ah!, isso não ocorre a ninguém. É absurdo demais. É escandaloso. É repugnante. É impossível.


E eu lhes direi no entanto: foi precisamente isso o que aconteceu, patetas. Enquanto vocês enchiam sua cabeça de cocô universitário, tentando menos buscar conhecimento do que imitar trejeitos verbais para parecer bons meninos no ambiente ideológico em torno (v. meu artigo “O imbecil juvenil”, http://www.olavodecarvalho.org /textos/juvenil.htm ), preferi ficar em casa estudando, por achar que assim faria melhor uso das horas que o pessoal uspiano gastava em condução, papo furado, assembléias, greves, festinhas de embalo e surubas gerais no CRUSP, totalizando essas várias ocupações aproximadamente noventa e oito por cento da vida acadêmica útil. Preservando minha inteligência dessa centrifugação mortífera e da influência corruptora de orientadores ignorantes, estudei para saber, para aplacar minhas dúvidas, sem nenhuma esperança fútil de glórias escolares provincianas. Não nego que ganhei algo além do puro conhecimento. Ganhei o prazer de poder chamar os fulanos de burros sem nenhuma intenção insultuosa e com estrito realismo científico. Enquanto eles se intoxicavam de Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Foucault, Derrida, e na melhor das hipóteses Nietzsche e Heidegger, brilhantes professores de confusão mental, coloquei para mim mesmo as questões fundamentais da filosofia política – que é ao mesmo tempo filosofia da História – e busquei respondê-las com toda a seriedade, cercando-me ainda de toda a ajuda disponível em livros de várias épocas, revistas científicas e contatos pessoais com estudiosos de vários países.

Os resultados foram sendo apresentados, aqui e ali, sob a forma de aulas e apostilas, sem a menor preocupação de publicá-los em livros. Livros para que? No Brasil de hoje, quanto mais sério o livro, maior a certeza de que será totalmente ignorado exceto pelo círculo de estudiosos que já o conheciam pela audição direta do autor. Numa época em que a literatura é personificada pelo sr. Luís Fernando Veríssimo, a filosofia por dona Marilena e a ciência política pelo dr. Emir Sader, qualquer esforço científico mais sério fica um pouco constrangido de se mostrar em público. Voltamos à era da difusão oral. Todo conhecimento efetivo tornou-se esotérico. O essencial do que aprendi e ensinei sobre a filosofia política está nas gravações dos meus cursos dados na PUC do Paraná, bem como nas apostilas “Ser e Poder”, “Que é a Psique?” e “O Método nas Ciências Humanas”. Quem teve acesso a esse material – que publicarei quando os afazeres jornalísticos me derem um descanso para poder editá-lo --, sabe que existem meios para descrever objetivamente uma situação político-social qualquer e prever com grande margem de acerto suas possibilidades de desenvolvimento. É isso, e nada mais, o mistério por trás das minhas previsões. Quanto aos erros alheios, não me cabe explicá-los.

Das questões a que me referi acima, algumas das mais importantes para a análise das situações políticas eram as seguintes:

1. Qual é a natureza do poder, não só na política mas em todas as relações humanas, e qual a diferença específica entre o poder político e as demais formas de poder?

2. Que é propriamente a “ação” em escala histórica? Em que condições a expressão “história disto” ou “história daquilo” se refere a uma entidade real, capaz de ação contínua ao longo do tempo, e quando se refere apenas, metonimicamente, a um sujeito ideal, sem unidade de ação própria, como por exemplo quando se fala em “História do Brasil”, ou “história da burguesia”? Em suma: quem é o sujeito da História?

3. Qual a relação entre as “intenções” subjetivas dos agentes históricos e os efeitos reais de suas ações? Qual a equação que se forma entre o conhecimento objetivo dos dados da situação, as decisões tomadas, a execução, os resultados específicos e sua diluição num quadro maior onde outros fatores entram em jogo? Existe uma ação histórica eficiente, na qual os efeitos reproduzam mais ou menos fielmente as intenções? Ou, ao contrário, a História humana estará sempre condenada a ser, como dizia Weber, “o conjunto das conseqüências impremeditadas das nossas ações”?

4. Dando por pressuposto que ninguém pode se colocar fora do quadro comum da vida humana para observá-lo “de cima”, e que portanto toda observação é uma forma de participação, não é possível isolar totalmente observação e confissão. Qual a relação entre autoconhecimento e conhecimento histórico? Em que medida o conhecimento da história pode e deve ser um meio de integração da consciência pessoal do estudioso, e em que medida esta se reflete na veracidade da descrição histórica obtida? Em que medida toda história é autobiografia e, portanto, toda descrição de uma situação política, social e cultural determinada é uma confissão pessoal?

5. Em que medida, portanto, o estudo das ciências humanas é uma prática “ascética” de autoconhecimento, e em que medida as disciplinas ascéticas e místicas desenvolvidas pelas religiões tradicionais, bem como as técnicas modernas de psicoterapia e auto-ajuda, podem desempenhar nesse estudo uma função essencial?

6. Como é a psicologia do conhecimento na História e nas ciências humanas em geral? Da percepção dos dados sensíveis (documentos, monumentos, ações observadas) até as sínteses interpretativas gerais, qual o trajeto psicológico percorrido e como dirigi-lo para diminuir a possibilidade de erros?

Os filósofos que mais estudei para encontrar as respostas (e ficam aí como sugestões para os interessados) foram Platão, Aristóteles, Sto. Agostinho, Sto, Tomás, S. Boaventura, Duns Scot, Leibniz, Schelling, Husserl, Scheler, Lavelle, Croce, Ortega, Zubiri, Marías, Voegelin, Lonergan, o nosso Mário Ferreira dos Santos e o Albert Camus de L'Homme Révolté . Os grandes historiadores da filosofia, como Gomperz, Ueberweg e Zeller, devem ser lidos com devoção. Outros autores da área de ciências humanas que muito me ajudaram foram Ibn Khaldun, Vico, Ranke, Taine, Huizinga, Weber, Böhm-Bawerk, von Mises, Sorokin, Victor Frankl, Paul Diel, Eugen Rosenstock-Huessy, Franz Rosenzweig, Lipot Szondi, Maurice Pradines, Alois Dempf, Max Dvorak, Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, A. D. Sertillanges, Mortimer J. Adler, Oliveira Martins, Gilberto Freyre e Otto Maria Carpeaux. Apesar de inumeráveis erros de informação, a Life of Napoleon de Walter Scott também foi de muito proveito pela acuidade da sua psicologia histórica. O maior historiador vivo hoje em dia é Modris Eksteins (sabe o que significa “tem de ler”?). Dos poetas e ficcionistas, aqueles que produziram verdadeiras descrições científicas da condição humana, muito úteis nos meus estudos, foram Sófocles, Dante, Shakespeare, Camões, Cervantes, Goethe, Dostoiévski, Alessandro Manzoni, Pío Baroja, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Antonio Machado, Thomas Mann, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer, Julien Green, Georges Bernanos e François Mauriac. A Bíblia tem de ser relida o tempo todo (não leia o Evangelho em busca de “religião”: leia como narrativa de alguma coisa que realmente aconteceu; atenção especial para Mateus 11:1-6, onde o próprio Jesus ensina o critério para você tirar as dúvidas a respeito d'Ele; penso nisso o tempo todo). O Corão, os Vedas, o Tao-Te-King e o I-Ching, assim como os escritos de Confúcio, Shânkara e Ibn'Arabi, merecem consultas periódicas. Dos conselhos pessoais que recebi de mestres generosos, a quem incomodei por meio de cartas, telefonemas e visitas, falarei outro dia.

O importante é você não estudar por estudar, para “adquirir cultura” ou seguir carreira universitária, mas para encontrar respostas a questões determinadas, que tenham importância existencial para você, para sua formação de ser humano e não só de estudioso. É claro que as questões vão se definindo aos poucos, no curso das leituras mesmas, mas à medida que isso acontece elas vão definindo melhor o rumo dos estudos. E é essencial que, na ânsia de ler, você não deixe sua acumulação de conhecimento ultrapassar o seu nível de autoconsciência, de maturidade, de responsabilidade pessoal em todos os domínios da vida. Se você não é capaz de tirar de um livro conseqüências válidas para sua orientação moral no mundo, você não está pronto para ler esse livro. Não esqueça nunca o conselho de Goethe: “O talento se aprimora na solidão, o caráter na agitação do mundo.”

Entre Lúcifer e Satã

Por Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 23 de março de 2006


O que quer que você pense ou diga, por mais importante, elevado e bonitinho que lhe pareça, está sendo pensado ou dito dentro do quadro da realidade e não acima dele; é somente mais um acontecimento sucedido dentro do fluxo temporal e cósmico no qual você é arrastado como os dias, as vidas, os átomos e as galáxias, e não uma escapada miraculosa para fora e para cima de tudo o que existe. Ainda que o conteúdo intencional desses pensamentos se refira ao “todo”, ao “universo”, o fato de você pensá-lo não coloca você acima do todo, como um juiz soberano e transcendente, mas apenas imita, desde dentro da imanência, aquele aspecto limitado da transcendência no qual você está pensando nesse momento. Nenhum ser humano julga o universo, a totalidade do real. Quando ele inventa sentenças que parecem fazer isso, o máximo que consegue é julgar-se a si mesmo.

Isso não quer dizer que, desde dentro da realidade sensível, você não faça a mínima idéia do que há para além dela. O simples fato de você poder criar aqueles julgamentos, ainda que errados, já mostra que algo, desde dentro e desde baixo, você consegue apreender do que está fora e acima. Digo “apreender” e não apenas “imaginar”, como preferiria Kant, porque se fosse apenas imaginado seria arbitrário e não suscetível de fiscalização racional ou confronto com a experiência; e o fato mesmo de estarmos discutindo isso já prova que não é assim. Por isso, se sobre a totalidade você nada pode dizer que a transcenda, a abarque e a julgue desde o além, também nada pode impedi-lo de olhar para esse além e saber algo a respeito. Se estivéssemos totalmente presos na imanência e na finitude, uma inteligência capaz de apreender as noções de infinito e de absoluto seria um luxo biológico inexplicável (a hipótese de que tenhamos chegado a isso pelo acúmulo de pequenas ampliações quantitativas da inteligência símia é simiesca em si mesma).

As duas máximas ilusões dos filósofos, ao longo dos tempos, foram precisamente essas: uns pretenderam transcender a totalidade e julgá-la, outros decretaram que nada podemos saber sobre a transcendência. Uns quiseram nos transformar em deuses; outros, em bichinhos inermes separados da transcendência por fronteiras cognitivas intransponíveis.

Na Bíblia, esses dois erros fatais da inteligência humana já estavam anunciados com muita precisão. A ilusão de julgar o mundo enquanto se está dentro dele é o “conhecimento do bem e do mal” que a serpente promete a Eva. O muro que veda o acesso à transcendência é a “insensatez” que limita a visão da existência à esfera do imediatamente acessível.

Esses dois erros têm nomes técnicos tradicionais, derivados da mesma raiz: gnosticismo e agnosticismo. O primeiro promete a posse de um conhecimento impossível; o segundo inibe e frustra a aquisição de um conhecimento possível. Correspondem a dois nomes do demônio: Lúcifer e Satã. O demônio da falsa luz e o demônio das trevas falsamente triunfantes. O demônio do conhecimento errado e o demônio da ignorância soberba.

Platão e Aristóteles já sabiam que a condição humana não é nem conhecimento, nem ignorância, mas a tensão permanente entre esses dois pólos, o primeiro pertencendo aos deuses, o segundo aos animais.

O que caracteriza a filosofia moderna como um todo é a perda dessa dialética tensional, a proclamação alternada do conhecimento absoluto e da ignorância invencível. De um lado, a metafísica onipotente de Descartes e Spinoza; de outro, o ceticismo radical de Hume. É verdade que Kant quis encontrar uma via média, mas, ao limitar as possibilidades de conhecimento aos fenômenos sensíveis e às formas vazias da razão, reduzindo à pura imaginação e à fé o acesso à transcendência, criou a forma mais requintada e letal de agnosticismo moderno. Como que em compensação, ergueu no horizonte a miragem gnóstica da “paz eterna”, tornando-se o profeta da burocracia global e de um cristianismo biônico sem nenhum Cristo de carne e osso.

Cabeça de abortista

Por Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 24 de novembro de 2005




A história do movimento abortista – e que vão para o diabo os juízes que quiseram proibir o uso dessa palavra – é uma sucessão de fraudes nojentas. A mais famosa foi o processo Roe versus Wade, que legalizou o aborto nos EUA enganando a Suprema Corte com o falso depoimento de uma jovem que alegava ter engravidado por estupro. Passadas três décadas, a própria testemunha pediu reabertura do caso, confessando que havia mentido sob pressão de militantes abortistas.

Bernard Nathanson, importante líder da luta pela liberação do aborto nos anos 60, admitiu ter falsificado estatísticas para persuadir o público a aceitar a nova lei.

A CFFC, “Catholics for a Free Choice”, é uma organização satanista -- com papisa, odes a Lúcifer e tudo o mais -- que se faz passar por católica para induzir os fiéis a acreditar que a Igreja, no fundo, não é contra o aborto.

A Planned Parenthood, barulhenta organização abortista dos EUA, está sob investigação porque há décadas seus membros médicos praticam abortos em meninas menores de 14 anos sem apresentar prova de estupro, exigida por lei nesses casos. São alguns milhões de crimes, sob o manto de uma “luta pelo direito”.

Na perspectiva dessa tradição, não espanta que seus adeptos brasileiros cheguem ao requinte de mentir quanto ao conteúdo mesmo da lei que está para ser votada no Congresso, levando o povo a crer que ela só libera o aborto até os três meses de gestação quando de fato ela o permite até o último dia da gravidez. Entre o texto da lei e o discurso que a embeleza, a diferença é abissal.

Perto dessa obra-prima de propaganda enganosa, é até irrelevante que mintam também nas estatísticas, alegando que a legalização diminui o número de abortos e apresentando como prova os cálculos estilo Nathanson produzidos por um tal Instituto Allan Guttmacher, sem avisar, é claro, que essa entidade pertence a uma clínica de aborteiros. Na verdade, o número de abortos legais, depois da liberação, subiu de 200 mil para 1.400.000 por ano nos EUA e de 4 mil para 115 mil no Canadá. O primeiro país a legalizar o aborto foi a Rússia, em 1921, por decreto do próprio Lênin. Hoje ela é recordista mundial de abortos: a média é seis por mulher. Daí o surgimento, relatado pela revista Veja , de um próspero comércio de fetos, vendidos a 200 dólares cada um para clínicas de estética que oferecem tratamentos com células-tronco.

Nenhuma causa idônea necessita de tantas fraudes, de tantos crimes, de tantas baixezas para defender-se. Se o abortismo se mela nessa sujeira com tanta persistência, é por causa da moral sui generis que o inspira.

Cada abortista honesto, se é que existe, deveria estar pronto para admitir que, se o pegassem de jeito umas horas antes do seu nascimento, não teria havido mal nenhum em picá-lo em pedacinhos e vendê-lo para um laboratório. Teria sido até uma medida humanitária, contribuindo para o avanço da pesquisa com células-tronco.

Ele não teria agora o gostinho de apresentar ao público sua proposta indecente com trejeitos de dignidade quase persuasivos, mas alguma senhora das redondezas talvez estivesse contemplando no espelho, com enorme satisfação, o sumiço de uma rugas e pés-de-galinha. A própria mãe do distinto teria desfrutado por mais uns anos o prazer narcísico de uma vagina apertadinha e de umas estrias a menos, incentivando o maridão a gerar mais alguns bebês para ser jogados no balde e fomentando destarte o progresso da ciência. Todas essas vantagens indiscutíveis teriam sido obtidas em troca da supressão de um simples feto de abortista, uma coisinha de nada. Vendo frustrada por pais reacionários a sua oportunidade de prestar tão relevante serviço à humanidade, e não podendo, lamentavelmente, realizá-lo em modo retroativo, o referido encontra alguma compensação moral na luta para que outros bebês tenham o direito que ele não teve.

Pessoas orientadas por um ideal como esse não poderiam mesmo adaptar-se aos padrões de moralidade e legalidade bons para os demais seres humanos.

Alquimia da islamização

Por Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 21 de novembro de 2005



Um vício generalizado da nossa época é o abuso das figuras de linguagem. Abuso não quer dizer uso excessivo, mas uso errado. Figuras de linguagem existem para três finalidades: expressar de maneira compacta um aglomerado de significações, enfatizar no objeto um valor ou nuance que o seu simples conceito não enuncia, dar voz à primeira impressão de um objeto ainda mal apreendido, na esperança de que esse artifício provisório ajude a apreendê-lo melhor. O primeiro desses usos é poético, o segundo retórico, o terceiro dialético ou propriamente filosófico. Em cada um deles as relações entre o objeto apreendido e sua expressão verbal formam uma equação diferente. Em todos o emissor do discurso tem o domínio consciente da equação. A prova disto obtém-se pela análise que torna claro o que parecia obscuro: o aglomerado poético pode ser decomposto nas suas várias camadas de significado (se não pode, então não é poesia, é macumba); a qualidade retoricamente acentuada pode ser distinguida do objeto que a ostenta; a primeira impressão pode ser completada por impressões subseqüentes, expressas em outras tantas figuras de linguagem, até que da confluência das várias impressões e respectivas figuras surja, numa síntese intuitiva, a forma essencial do objeto visado.

A figura de linguagem é usada de maneira abusiva quando não serve para nenhuma dessas operações. As palavras não expressam então nem uma riqueza de significações simultâneas, nem uma ênfase valorativa consciente, nem um esforço de chegar à realidade através do véu do discurso. Expressam a paralisia do pensamento que, não sabendo resolver a equação, isto é, passar do discurso à percepção intuitiva por meio da análise, se detém na repetição hipnótica do discurso mesmo, fazendo dele um substitutivo da realidade.

Se tantos intelectuais europeus não tivessem se habituado a pensar assim -- se é que isso ainda é pensar --, jamais teria surgido uma escola como o desconstrucionismo, que nega a realidade em nome do discurso. O desconstrucionismo não é uma análise filosófica: é a simples transposição metalingüistica da própria patologia verbal que o alimenta. Mais ou menos como aquelas especulações complexíssimas, intermináveis e desesperadoramente fúteis com que um esquizofrênico letrado, acreditando analisar seus sintomas, não faz senão produzir alguns novos – ou, pior ainda, um upgrade dos anteriores.

A doença, surgida na Europa, chegou até a América e, aqui, fez vítimas nos lugares mais inesperados. A metonímia – ou mais precisamente metalepse -- “guerra contra o terrorismo”, que algum iluminado soprou para dentro da cabeça do presidente Bush, prova que conservadores americanos são capazes de pensar tão esplendidamente mal quanto qualquer maoísta do Quartier Latin. Guerra contra o terrorismo é guerra contra quem? Terrorismo não é o nome de um inimigo, mas de uma de suas formas de ação. Adotaram essa expressão desastrada por dois motivos. Primeiro, por covardia: não queriam dizer “islamismo” para não ser politicamente incorretos, nem “marxismo” para não parecer “nostálgicos da Guerra Fria”, nem muito menos “islamomarxismo” ou “marxo-islamismo” (nomes horríveis, mas tecnicamente apropriados, descrevendo com exatidão os elementos do composto) porque os exporia à rotulagem fácil de “teóricos da conspiração”. O segundo motivo, derivado do primeiro, é a pseudo-esperteza de usar um chavão publicitário em vez do nome da coisa. É fácil ser contra o “terrorismo” porque é um meio de ação hediondo, só aceitável naquele estado alterado de consciência que revela, precisamente, o “fanático”. Como ninguém quer ser carimbado de fanático, todo mundo adere, pelo menos da boca para fora, à “guerra contra o terrorismo”. E tão reconfortados se sentem ao ver que concordaram em lutar, que já nem ligam de continuar sem saber contra quem. Só que, sendo impossível combater por meios invariavelmente lícitos um inimigo tão protéico e evanescente, alguma violência com aparência de terrorismo todo mundo está sujeito a cometer a qualquer momento, e no instante seguinte estarão todos, em nome da concórdia, se acusando uns aos outros de terroristas. Toda a chamada “ordem internacional” baseia-se, hoje, nessa absurdidade completa. E desta nascem muitas outras.


Os franceses, por exemplo, ficaram contentíssimos com a fatwa – decreto inspirado – com que a autoridade religiosa islâmica amorteceu em cinco minutos a baderna ante a qual o governo tivera de se contentar com gesticulações impotentes adornadas de palavreado pomposo. Nem de longe percebem que refrear as manifestações é demonstração de força ainda mais eloqüente do que produzi-las. Se os jovens muçulmanos rebelados se mostraram capazes de criar em poucos dias mais confusão e terror do que os meninos enragés de 1968, um único mufti , com umas poucas linhas escritas, provou ter mais autoridade do que o governo, a polícia, a mídia e a opinião pública da França, todos somados. Criar o caos, qualquer bando de irresponsáveis pode, com um pouco de ousadia. Mas produzir o caos e em seguida transfigurá-lo em ordem é o máximo de controle que seres humanos podem ter sobre o fluxo dos acontecimentos. É a arte da transformação, como em alquimia: Solve et coagula . Primeiro a substância deve ser dissolvida e transformada numa pasta caótica pela ação corrosiva do “mercúrio” (entre aspas porque não corresponde ao mercúrio químico; designa a força dissolvente e desorganizante em geral). Quando está no ponto, joga-se nela o “enxofre”, que a cristaliza, produzindo o “sal” – a nova ordenação interna desejada. Há séculos – documentadamente, pelo menos desde Ibn Khaldun (1332 - 1406) -- os muçulmanos sabem que esses símbolos alquímicos podem designar também forças histórico-culturais, cujo manejo sutil está então ao alcance de uma ciência política infinitamente mais fina do que aquilo que leva esse nome nas universidades ocidentais. A dialética de Hegel e Marx é uma caricatura de alquimia política em linguagem pedante. A superioridade intelectual dos muçulmanos, nesse ponto, é arrasadora (leiam Henry Corbin e Seyyed Hossein Nasr), e é nela – não na pura brutalidade do terrorismo, ou na força passiva da multiplicação genética -- que reside o segredo da expansão islâmica. Por isso é que, por trás de sua aparência de imigrantes bárbaros, os muçulmanos têm manipulado os Estados ocidentais com a facilidade de quem tapeia crianças. Querem um exemplo?

Com o apoio da British Advertisings Standards Authority, desde janeiro de 2005 os muçulmanos ingleses lançaram uma campanha para proibir outdoors que, pela exibição ou insinuação de nudez, fira os seus sentimentos religiosos. O Canadá foi um pouco além: está discutindo seriamente, por sugestão de um ex-procurador geral, a hipótese de adotar a shari'a (conjunto de mandamentos corânicos) como lei reguladora para os residentes muçulmanos, que assim teriam direitos e deveres diferentes daqueles que pesam sobre o restante da população (com a conseqüência inevitável de que, com o crescimento demográfico desproporcional, logo a shari'a dominará todo o Canadá). Nos EUA, inúmeras escolas oficiais – notem bem: oficiais – punem qualquer crítica ao Islam submetendo o faltoso a um estágio obrigatório de “reeducação da sensibilidade”, que inclui horas e mais horas de recitações do Corão e audição de pregações islâmicas.

Ou seja: uma comunidade carente, que chegou anteontem trazendo nada mais que sua miséria e seu ódio ao país hospedeiro, em pouco tempo conquista direitos especiais e uma posição privilegiada na sociedade, e sua religião é tratada com a deferência devida a uma prima-dona autoritária e ranheta.

Enquanto isso, o que se passa com a religião local, cujos santos e mártires, mediante sofrimentos e trabalhos indescritíveis, criaram a civilização e a cultura desses Estados e lhes ensinaram os primeiros princípios da moralidade que fundamentam suas leis?

Em várias cidades da Europa e dos EUA, a exibição pública de um crucifixo é banida por lei como atentatória aos direitos dos ateus; o professor ou aluno que entre numa escola oficial portando uma Bíblia corre o risco de ser suspenso ou expulso; a prece em voz alta é vetada em certos edifícios estatais, os festejos de Natal são proibidos nas praças públicas, e inscrições com os Dez Mandamentos são arrancadas por iniciativa da autoridade ciosa de não ferir os sentimentos politicamente corretos.

Não vou me prolongar na descrição do estado de coisas. Digo apenas que é aviltante e criminoso. Quem quiser saber mais – e tiver estômago para isso – que leia “Persecution”, de David Limbaugh (Harper Collins), “The Criminalization of Christianity”, de Janet L. Folger (Multnomah Publishers), “The ACLU Versus America”, de Alan Sears e Craig Osten (Broadman & Holman) ou simplesmente acompanhe as notícias diárias sobre anticristianismo militante no site www.wnd.com .

A religião declaradamente inimiga do Ocidente (v. “The West's Last Chance. Will We Win The Clash of Civilizations?”, de Tony Blankley, Regnery, 2005) é tratada nos países ocidentais como se fosse senhora do espaço inteiro, enquanto as religiões-mães da nossa civilização, judaísmo e cristianismo, são escorraçadas como cães sarnentos, por iniciativa das próprias autoridades governamentais que, por outro lado, se dizem em “guerra contra o terrorismo islâmico”.

Cada vez mais a posição da religião cristã e judaica no Ocidente, principalmente na Europa e nos Estados americanos governados pela esquerda, se torna a mesma que têm nas ditaduras islâmicas -- como por exemplo o Irã, onde todo culto não-muçulmano só pode ser praticado em recinto fechado, sendo proibida toda pregação pública, distribuição de livros, etc. – ao mesmo tempo que o Islam se coroa dos direitos e privilégios de uma religião hegemônica.

Mas, partindo daquela premissa inicial incongruente, muitas análises da situação, correntes na mídia e nos meios universitários, conseguem inverter os termos do problema, seja por maquiavelismo cínico, seja por ignorância:

“A batalha subjacente (à luta contra o terrorismo) será entre a civilização moderna e os fanáticos antimodernistas; entre aqueles que acreditam no primado dos indivíduos e os que acreditam que os seres humanos devem obediência cega a uma autoridade mais alta; entre os que dão prioridade à vida neste mundo e aqueles que acreditam que a vida humana não é senão a preparação para uma existência além da vida...”

Quem escreveu isso foi o ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton, que se gaba de ser um grande “analista simbólico” das mudanças civilizacionais. Movido por seu ódio à “direita religiosa” americana, ele descreve um campo mundial dividido entre “fundamentalistas” ou “transcendentalistas”, como George W. Bush e Bin Laden, e “modernistas” ou “laicistas” como ele próprio, e conclui: “O terrorismo rompe e destrói vidas. Mas o terrorismo não é o único perigo que enfrentamos.”

Não é. O “perigo que enfrentamos” são inscrições dos Dez Mandamentos, são crianças cristãs cantando canções de Natal, são padres, pastores e rabinos recitando Salmos, são famílias religiosas que não aceitam o casamento gay e o abortismo em massa, é, enfim, tudo aquilo que se opõe à ética materialista, atéia e politicamente correta.

Só há um problema: essa ética é que, em nome do “multiculturalismo”, concede direitos especiais à minoria muçulmana enquanto sufoca tradições ocidentais milenares. Como poderia então ser ela a grande inimiga do radicalismo islâmico? Ela é o instrumento mesmo de que este se serve para debilitar a cultura da Europa e da América e subjugá-la ao seu ímpeto revolucionário e destruidor.

E não há nisso nenhuma estranha coincidência. A origem dessas modas culturais é bem conhecida: remonta, através de uma cadeia de intermediários fiéis, à Escola de Frankfurt e ao filósofo húngaro George Lukacs. Elas são o chamado “marxismo cultural” em estado puro – a arma mortífera concebida dentro do próprio Ocidente para destruir sua civilização.

Impressionados com o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental no começo do século XX, e especialmente com a defecção geral dos proletários que foi a sua causa imediata, os frankfurtianos e Lukacs começaram a especular se, além da resistência político-militar da “burguesia”, não haveria outro fator, como direi, astravancându us pogréssio do çossializmu. Chegaram à conclusão de que havia: eram milênios de herança judaico-cristã, o universo simbólico inteiro da civilização Ocidental. “Quem nos livrará da civilização Ocidental?”, perguntava Lukacs.

A resposta não demorou a vir de Moscou. Stalin, transferindo para as nações a teoria da luta de classes, dividiu o mundo em Estados proletários e Estados burgueses. Os primeiros estavam, evidentemente, no chamado “Terceiro Mundo”. A ideologia do terceiromundismo começou a nascer aí, entre as duas guerras, com o intuito de levantar contra o Ocidente burguês todas as forças políticas, culturais, psicológicas e psicopáticas da Ásia, da África e da América Latina. Os “condenados da Terra” libertariam da civilização Ocidental o pobre Lukacs por meio do intenso trabalho dos partidos comunistas para arregimentar, treinar e armar a grande “nação islâmica” para a guerra mortal contra o Ocidente. A história é longa para contar em detalhes, mas a leitura do segundo volume de “The Sword and the Shield. The Mitrokhin Archive”, de Christopher Andrew e Vassili Mithrokin, recém publicado sob o título “The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World” (Basic Books, 2005), é um bom começo para compreendê-la.

A invasão física e cultural do Ocidente por hordas de imigrantes ao menos implicitamente solidários com o terrorismo é a bomba de efeito retardado plantada pela estratégia global estalinista. É claro que, nisso, o Islam não teve o papel passivo de massa de manobra. Elites islâmicas versadas tanto nas tradições muçulmanas quanto nas doutrinas ocidentais, especialmente o marxismo, o positivismo (no sentido amplo da palavra), o existencialismo e o estruturalismo-desconstrucionis mo, tinham suas próprias ambições e um plano de longo prazo.

Nos anos 50, um suíço islamizado, Frithjof Schuon, voltou da Argélia, transfigurado por uma longa imersão nas ciências espirituais islâmicas, àquela altura praticamente desconhecidas no Ocidente fora de um reduzido círculo de interessados. Sua promessa ao chegar foi: “Vou islamizar a Europa.” Disse e fez. Sem comícios nem bombas. Tornou-se o guia espiritual de eminentes intelectuais, milionários e homens de governo europeus. Almas de elite, que haviam perdido a conexão íntima com o cristianismo, recuperaram um sentido de ordem islamicamente moldado. Não se “converteram” ao Islam, pelo menos exteriormente. Apenas, suas almas foram dissolvidas e recristalizadas no forno da alquimia espiritual islâmica. Discípulo do principal discípulo de Schuon -- o lituano naturalizado britânico Martin Lings – é, por exemplo, o futuro rei da Inglaterra, o príncipe Charles. Só por essa amostra vocês imaginam o poder da coisa. O rombo por onde o Islam invadiu o Ocidente não está em baixo, entre o povão revoltado e estudantes furiosos. Está acima do que o comentário político usual enxerga.

Pode parecer absurdo que altas doutrinas espirituais convirjam com o marxismo, mas a identidade do alvo – a destruição do Ocidente – é patente demais para que a diversidade de inspirações originárias constitua problema. Ademais, inúmeros teóricos marxistas e muçulmanos vêm fazendo há décadas um profundo trabalho de harmonização das duas grandes utopias: o socialismo planetário e o califado global. A orientação mais geral é tomar o islamismo como um coroamento espiritual do socialismo meramente “terrestre”.

A visão monstruosamente invertida que Robert Reich apresenta da invasão islâmica – visão hoje compartilhada por quase todos os defensores “modernistas” do Ocidente, é, como a expressão mesma “guerra contra o terrorismo”, produto de um pensamento auto-impugnante que toma figuras de linguagem como objetos reais. “Fundamentalismo” é figura de linguagem. “Modernidade” é figura de linguagem. “Fanáticos” é figura de linguagem. “Choque de civilizações” é figura de linguagem. Nenhuma delas usada como utensílio provisório para a investigação da verdade, mas todas como fetiches verbais com que a confusão mental se camufla a si própria, fazendo-se passar por discurso de conhecimento.

A tragédia do estudante sério no Brasil

por Olavo de Carvalho em 15 de fevereiro de 2006

Publicado pelo Diário do Comércio em 13/01/2006



Toda semana, recebo dezenas de cartas de estudantes que, em busca de alguma formação intelectual, encontraram nas universidades que freqüentam apenas propaganda comunista rasteira, porca, subginasiana.

Não são, como em geral imaginam, vítimas de puras circunstâncias políticas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos à inteligência humana, que foram se acumulando no mundo, e não só no Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a primeira metade do século 20 trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma devastação geral como raramente se viu na História. A queda foi tão profunda que já não se pode medi-la. Num panorama inteiramente dominado por charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers, Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga, Arnold Toynbee – e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer – já se tornou invisível, inalcançável à imaginação dos nossos contemporâneos. Toda comparação é entre alguma coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar tudo com nada.

Isso não quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado. Pensadores de grande envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até 1985, o segundo até 1984, o terceiro até 1983. Mas seus ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussões idiotas como vem acontecendo, graças à ascensão política de alguns de seus discípulos, com o infeliz Leo Strauss.

Pois a desgraça se deu justamente na "corrente geral". O fim da II Guerra Mundial trouxe uma prodigiosa reorganização das bases sociais e econômicas da vida intelectual no mundo. Novas instituições, novas redes de comunicação, novos mecanismos de estocagem e distribuição das informações acadêmicas, novos públicos e, sobretudo, a ampliação inaudita do apoio estatal e privado à cultura e a formação dos grandes organismos internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com o descrédito do marxismo soviético e a profunda mutação interna da militância esquerdista internacional, a essa altura já plenamente imbuída das duas lições aprendidas da Escola de Frankfurt e de Georg Lukacs (mas também, mais discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta essencial não era propriamente contra o capitalismo, mas contra "a civilização ocidental"; (2) o agente principal do processo era a classe dos intelectuais.

Nessas condições, o crescimento fabuloso dos meios de atuação veio junto com o esforço multilateral de apropriação desses meios por parte de grupos militantes bem pouco interessados em "compreender o mundo" mas totalmente devotados a "transformá-lo". A redução drástica da atividade intelectual ao ativismo político foi a conseqüência desejada e planejada dessa operação, realizada em escala mundial a partir dos anos 60.

Não que o fenômeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral já vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo menos, através das grandes fundações "não lucrativas" que descobriram seu poder de orientar e manipular a seu bel-prazer a atividade intelectual, científica e educacional mediante a simples seleção ideologicamente orientada dos destinatários de suas verbas bilionárias.

Em 1954, uma comissão de investigações do Congresso americano já havia descoberto que fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituições de pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente antiamericano, anticristão e até anticapitalista. (Não me perguntem pela milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo. A explicação está resumida em http://www.olavodecarvalho.org/semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm . Inevitavelmente, a influência exercida por essas organizações não consistiu só em introduzir uma determinada cor política na produção cultural, mas em alterá-la e corrompê-la até as raízes, subordinando aos objetivos políticos e publicitários visados todas as exigências de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa interferência, fraudes cabeludas como o Relatório Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se ao meio acadêmico e à mídia cultural como produtos respeitáveis de uma atividade científica normal.

A comissão foi alvo de ataques virulentos de toda a grande mídia, e seu trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes de consulta sobre a instrumentalização política da cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 – vocês podem comprá-lo pelo site www.bookfinder.com ). Na verdade, sem ele não se pode compreender nada do que se passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriação dos meios de ação cultural pelas organizações militantes e o sacrifício integral da inteligência humana no altar da "vontade de poder" simplesmente se globalizaram.

Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o progresso do conhecimento e a melhoria da condição de vida da espécie humana foram assim desperdiçados para sustentar a guerra geral da estupidez militante contra a "civilização ocidental" que havia gerado esses mesmos recursos.

Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que o seu peso se fez sentir mais densamente em países novos do Terceiro Mundo, onde as criações das épocas anteriores não tinham sido assimiladas com muita profundidade e as raízes da civilização podiam ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbárie foram talvez mais rápidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frágeis, vinham dando alguns frutos promissores. A comparação impossível entre as duas épocas, que mencionei acima, é ainda mais impossível no caso brasileiro. Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Álvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem da "cultura brasileira"? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavelmente irrisória.

A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco que entendia e já não tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam, que me levam ao êxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males econômicos, políticos e administrativos do Brasil, sem ligar a mínima para a destruição da cultura, como se a inteligência prática subsistisse incólume ao emburrecimento geral, como se inteligência fosse um adorno a ser acrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como se a inépcia absoluta não fosse de maneira alguma um obstáculo à conquista da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve um dia.

Mas não, a inteligência nacional não acabou no dia em que os nossos estudantes tiraram o último lugar numa avaliação entre alunos do curso secundário de 32 países: acabou logo em seguida, quando o ministro da Educação disse que o resultado poderia ter sido pior.

Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo. Na eleição seguinte, o país colocou na presidência um carreirista enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado um símbolo da autenticidade popular. A imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida, quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o nome do então presidenciável para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o último lugar num teste chegava a ser meritório.

Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse só da situação política, haveria esperança de saná-lo por meio da ação política. Mas a ação política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível nas próximas duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por exemplo, o país terá de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a "p... que não pariu". Sim, a política brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP, com o Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de outro, num torneio de arrogância, presunção, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada e estupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao poder, e ainda não parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, ávidos de mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruição está longe de haver-se completado.

Da política nada de bom se pode esperar num prazo humanamente suportável. Uma ação cultural de grande escala – a fundação de uma autêntica instituição de ensino superior, para contrabalançar a desgraça uspiana – também não é nada provável, dada a omissão das chamadas "elites", sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao primeiro zesserra que apareça.

Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faça dela o objetivo de sua existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), e o isolamento, que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que aquele em que se encontram.

A única solução viável, que enxergo, é a formação de pequenos grupos solidários, firmemente decididos a obter uma formação intelectual sólida, de início sem nenhum reconhecimento oficial ou acadêmico, mas forçando mais tarde a obtenção desse reconhecimento mediante prova de superioridade acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a experiência mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, já está pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos, mas em professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, o que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia.

O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar o trivium, aprender a escrever lendo e imitando os clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles, muito Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto possível o legado da universidade alemã e austríaca da primeira metade do século XX, conhecer muito bem a história comparada de duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e da mística de pelo menos três religiões, e então, só então, ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime você ainda se impressionar com esses três, é porque é burro mesmo e eu nada posso fazer por você.

Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje é tão baixo, tão torpe, que só de a gente apresentar essa lista – o mínimo requerido para uma formação séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro não lê nada, só resumo e orelha, além de Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem não saiba disso e não há quem não acabe se acomodando a essa situação como se fosse natural e inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.

A guerra contra as religiões

Por Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de janeiro de 2006


Embora desde a Revolução Francesa o grosso da violência militante tenha se originado sempre nas ideologias materialistas e escolhido como vítima preferencial a população religiosa; embora a perseguição aos católicos, ortodoxos, protestantes e judeus tenha matado mais gente só no período de 1917 a 1990 do que todas as guerras religiosas somadas mataram ao longo da história universal; embora nas duas últimas décadas o morticínio de cristãos tenha voltado a ser rotina nos países comunistas e islâmicos, chegando a fazer 150 mil vítimas por ano; embora todos esses fatos sejam de facílima comprovação e de domínio público (v. nota no fim deste artigo); e embora nas próprias nações democráticas o acúmulo de legislações restritivas exponha os religiosos ao perigo constante das perseguições judiciais, -- a grande mídia e o sistema de ensino na maior parte dos países insistem em continuar usando uma linguagem na qual religião é sinônimo de violência fanática e na qual a eliminação de todas as religiões é sugerida ao menos implicitamente como a mais bela esperança de paz e liberdade para a humanidade sofrida.

A mentira gigantesca em que se sustenta essa campanha é tão patente, tão ostensiva, tão cínica, que combatê-la só no campo das discussões públicas é o mesmo que querer parar um assassino, ladrão ou estuprador mediante a alegação polida de que seus atos são ilegais. Os mentores e autores da campanha anti-religiosa universal sabem perfeitamente que estão mentindo. Não precisam ser avisados disso. Precisam é ser detidos, desprovidos de seus meios de agressão, reduzidos à impotência e tornados inofensivos como tigres empalhados.

A propaganda insistente contra uma comunidade exposta a risco não é simples expressão de opiniões: é ação criminosa, é cumplicidade ostensiva ou disfarçada com o genocídio. Aqueles que a praticam não devem ser apenas contestados educadamente, como se tudo não passasse de um pacífico debate de idéias: devem ser responsabilizados judicialmente por crimes contra a humanidade. A jurisprudência acumulada em torno das atrocidades nazistas, unânime em condenar a cumplicidade moral mesmo retroativa, fornece base mais que suficiente para condenar, por exemplo, um Richard Dawkins quando sai alardeando que o judaísmo e o cristianismo são “abuso de menores”, como se a noção mesma da proteção à infância não tivesse sido trazida ao mundo por essas religiões e como se elas não fossem, hoje, o último obstáculo à erotização total da infância e à subseqüente legalização universal da pedofilia (já praticamente institucionalizada no Canadá, um dos países mais ateus do universo).

Quando o sr. Dawkins se diz avesso ao uso de meios violentos para extinguir as religiões, mas propõe os mesmos objetivos ateísticos que há dois séculos buscam realizar-se precisamente por esses meios, ele sabe perfeitamente que a ênfase do seu discurso, e portanto seu efeito sobre a platéia, está na promoção dos fins e não na seleção dos meios. Voltaire, quando bradava “esmagai a infame”, negava estar incitando quem quer que fosse à violência física contra a Igreja Católica. Mas, quando os revolucionários de 1789 saíram incendiando conventos, destripando freiras e decapitando bispos, era esse grito que ecoava nos seus ouvidos e saía pelas suas bocas. Se a religião é, segundo o sr. Dawkins, “o maior de todos os crimes”, a matança de todos os religiosos terá sempre o atenuante da gravidade menor e o da sublime intenção libertadora. Quando no começo do século XX Edouard Drumont escrevia “ La France Juive”, ele não tinha em mente nenhuma crueldade a ser praticada coletivamente contra os judeus. Mas é impossível ler hoje suas páginas sem sentir o cheiro das câmaras de gás. Uma única e breve página vagamente anti-semita escrita por Winston Churchill na juventude precipitou-o numa tal crise de arrependimento, diante da ascensão do nazismo, que isso decidiu o restante da sua vida de líder e combatente. Drumont, que morreu em 1917, não poderia ter adivinhado o destino que os leitores dos seus livros dariam aos judeus. Mas o sr. Dawkins não precisa adivinhar o futuro para calcular o efeito de suas palavras: ele conhece a história do século XX, ele sabe a que resultados levam não somente as propostas explícitas como a de Lênin, “varrer o cristianismo da face da Terra”, mas também o anticristianismo mais sutil, mais sofisticado de um Heidegger, que, pretendendo expulsar Deus para fora da metafísica, convocou Adolf Hitler para dentro da História. O homem que, sabendo de tudo isso, se oferece para gravar programas de TV que apresentam a religião como a raiz de todos os males, como se os mais amplos morticínios da História não fossem males de maneira alguma, esse homem é simplesmente um apologista do genocídio, um criminoso vulgar como qualquer neonazista de arrabalde.

O sr. Dawkins já ultrapassou aquele limite da truculência mental e do desprezo à verdade, para além do qual toda a discussão de idéias se torna inútil. Não se trata de provar nada para o sr. Dawkins. Trata-se de provar seu crime perante os tribunais. O dele e o de inumeráveis organizações militantes, subsidiadas por fundações bilionárias, dedicadas a fomentar por todos os meios o ódio às religiões.

Todas as organizações religiosas que não se mobilizarem para a defesa comum não só no campo midiático, mas no judicial, devem ser consideradas traidoras, colaboracionistas e vendidas ao inimigo. E não espanta que usem para legitimar sua covardia abominável o pretexto do perdão e da caridade, prostituindo o sentido da mensagem evangélica que manda cada um de nós perdoar as ofensas feitas a ele próprio, nunca pavonear-se de cristão mediante o expediente fácil de perdoar crimes cometidos contra terceiros, que aliás nunca lhe deram procuração para isso. Não é um discípulo de Jesus aquele que, vendo seu irmão ser esbofeteado, se apressa em cortejar o agressor ofecendo-lhe a outra face da vítima.

Fundamentalismo?

O mais extraordinário é que as forças anticristãs e antijudaicas, mal escondendo seu apoio à ocupação islâmica do mundo ocidental, prevalecem-se da própria imagem sangrenta do radicalismo islâmico para projetá-la sobre todas as comunidades religiosas, sobretudo aquelas que são vítimas usuais da violência muçulmana, e transmitir ao mundo a noção de que todas são, no fundo, terroristas. O manejo astuto do termo “fundamentalismo” tem servido para esse ardil, que desonra qualquer língua culta. Esse termo designava originariamente certas seitas protestantes afeitas a uma leitura literal da Bíblia ou, mais genericamente, qualquer comunidade religiosa decidida a conservar o apego às suas tradições (um direito que hoje se reserva para muçulmanos, índios, africanos e seus descendentes, negando-o a todo o restante da espécie humana). Ao transferir o uso desse qualificativo para os terroristas islâmicos, a grande mídia e os intelectuais ativistas que a freqüentam cometeram uma impropriedade proposital. De um lado, esse uso camuflava o fato de que esses radicais não eram de maneira alguma tradicionalistas: eram revolucionários profundamente influenciados pelas ideologias de massa ocidentais – comunismo e nazifascismo –, bem como pelo pensamento “vanguardista” de Heidegger, Foucault, Derrida e tutti quanti. De outro lado, e por isso mesmo, o termo assim empregado ia-se imantando de conotações repugnantes, preparando seu uso futuro como arma de guerra psicológica contra as mesmas comunidades religiosas que o radicalismo islâmico tomava e toma como suas vítimas preferenciais: os cristãos e os judeus. Numa terceira fase, o qualificativo passou a ser usado ostensivamente contra essas comunidades, ao mesmo tempo que se espalhava pelo mundo a campanha de difamação anti-religiosa da qual o sr. Richard Dawkins é agora o mais espalhafatoso garoto-propaganda. Durante a invasão do Iraque, rotular como “fundamentalistas” o presidente Bush (cristão) e o secretário Rumsfeld (judeu) tornou-se repentinamente obrigatório em toda a mídia chique, com uma uniformidade que comprova, uma vez mais, a presteza da classe jornalística em colaborar com a reforma orwelliana do vocabulário.

Realizando um sonho de infância

Desde pequenos, os membros da futura Comissão de Desconstituição e Injustiça da Câmara Federal nutriam profunda revolta contra as palmadas que levavam de seus progenitores em represália ao exercício de direitos humanos fundamentais, como o de tentar furar os olhos de seus irmãozinhos, atear fogo à casa, esganar os periquitos da vizinha, esticar um barbante entre os degraus da escada só para ver a vovó rolando ou praticar qualquer outra daquelas truculências encantadoras que prenunciam uma brilhante maturidade de discípulos de Che Guevara.

Na adolescência, ainda parcialmente oprimidos sob a autoridade familiar, comoviam-se até às lágrimas com a perspectiva de tornar-se, à imagem do mestre, “eficientes e frias máquinas de matar” e sair massacrando padres, burgueses, pais, mães e demais autoridades, “pero sín perder la ternura jamás”.

O sonho kitsch do morticínio meigo encantou sua juventude e tornou-se o ideal orientador de sua formação moral. Infelizmente, durante todo esse longo período, nada puderam fazer de substantivo contra a autoridade opressora, da qual dependiam para seu sustento, vestuário, educação, lazer e outras maldades a que se submetiam com paciência de verdadeiros mártires do socialismo. Em segredo, juravam que um dia iam acabar com toda aquela injustiça capitalista.

Agora, crescidinhos, tiveram finalmente uma oportunidade da vingança redentora contra papai & mamãe. Ainda não puderam mandá-los para a cadeia, mas já quebraram a espinha dorsal da sua autoridade. Aprovaram, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 2654/03, que proíbe qualquer forma de castigo físico em crianças e adolescentes. O projeto será encaminhado ao Senado, sem precisar ser votado pelo Plenário da Câmara.

O incentivo direto e indireto à delinquência infanto-juvenil tem sido, há quase um século, um dos instrumentos fundamentais usados pelos ativistas de esquerda para minar a ordem social capitalista, gerando dentro dela um caos infernal para em seguida poder acusá-la de ser precisamente isso e propor a salvação geral mediante o acréscimo de controles estatais e burocráticos, exercidos, é claro, por eles mesmos. Intimamente associada a essa estratégia, a transferência progressiva de todas as formas de controle social para o grupo politicamente ativo é também um objetivo constante da subversão comunista. Todos os meios são usados para isso, sempre sob pretextos edificantes que colocam o eventual adversário na posição incômoda de parecer um defensor do mal. As mães que derem uma palmada no bumbum de seus filhos, por exemplo, serão agora encaminhadas compulsoriamente a um “programa comunitário de proteção à família”. Quem pode ser contra a proteção à família? Na URSS, os dissidentes eram encaminhados à “assistência psiquiátrica gratuita”. Quem pode ser contra o tratamento gratuito dos doentes mentais?

Nos EUA, já se tornou impossível ignorar o vínculo de causa e efeito entre as reformas educacionais “progressistas” adotadas desde John Dewey (1859-1952) e o crescimento avassalador da delinqüencia infanto-juvenil, um problema que o Estado já desistiu de eliminar, contentando-se agora em dedicar-se ao “gerenciamento de danos”, isto é, em adestrar a sociedade para que aceite o estado de coisas como fatalidade inevitável. (Sugiro, quanto a esse ponto, a leitura de Joel Turtel, Public Schools, Public Menace : How Public Schools lie to Parents and Betray our Children , Charlotte T. Iserbyt, The Deliberate Dumbing Down of America , Berit Kjos, Brave New Schools: Guiding Your Child Through the Dangers of the Changing School System , Brenda Scott, Children No More: How We Lost a Generation, Bob Whitaker, Why Johnny Can't Think e John Taylor Gatto, Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling. Todos esses livros podem ser encontrados pelo site www.bookfinder.com.) Simultaneamente, a intelectualidade ativista tira proveito da situação que ela própria criou, imputando a violência adolescente, por exemplo, às fábricas de armas, que já existiam no tempo em que as crianças se contentavam com traquinagens domésticas inofensivas.
A relatora do projeto na Comissão, Sandra Rosado (PSB-RN), justificou a nova lei afirmando que “educar pela violência é uma abominação, incompatível com o atual estágio de evolução da sociedade". Decerto: quando um país, governado pelos gangsters do Mensalão intimamente associados aos narcotraficantes das Farc, chega aos 50 mil homicídios por ano e ainda se preocupa mais em amarrar as mãos dos policiais do que em deter os criminosos, isso é um estágio de evolução incompatível com palmadas educativas nos bumbuns das crianças travessas. O tempo de tentar educar as safadinhas já passou: elas já estão todas na Câmara Federal.

Somada às demais medidas concomitantes tomadas pelo Estado-babá para a proteção dos delinqüentes e a criminalização de todas as formas tradicionais de autoridade, a nova lei promete ter efeitos culturais que farão Antonio Gramsci e os fundadores da Escola de Frankfurt ter orgasmos no túmulo. Deve ser – por fim! -- a liberação sexual dos mortos.

Fontes sobre a perseguição anti-religiosa

Livros:

• David Limbaugh, Persecution: How Liberals Are Waging War Against Christianity (Washington, Regnery, 2003).
• Roy Moore, So Help Me God: The Ten Commandments, Judicial Tyranny, and The Battle for Religions Freedom (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005).
• Janet L. Folger, The Criminalization of Christianity (Systers, Oregon, Multnomah, 2005).
• Rabbi David G. Dalin, The Myth of Hitler's Pope (Washington DC, Regnery, 2005).
• David B. Barrett & Todd Johnson, World Christian Trends, Ad 30-Ad 2200: Interpreting the Annual Christian Megacensus. William Carey Library, Send the Light Inc, 2003.
• E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control (South Bend, Indiana, St. Augustine's Press, 2000).
Internet:
• http://www.christianpersecution .info/
• http://zbh.com/links/martyred .htm
• http://www.freedomhouse.org /religion/
• http://www.christianmonitor .org/
• http://www.worship.com/help/
• http://www.wayoflife.org/fbns /state.htm
• http://www.thegreatseparation .com/newsfront/christian _persecution/
• http://www.persecution.com/
• http://www.jews4fairness.org /index.php
• http://www.wnd.com (site de notícias em geral, acompanha regularmente as notícias de perseguição religiosa no mundo).

A CLIENTELA DO ENSINO SUPERIOR PAGO

POR: MARIA HELENA MICHEL

Estado de minas, 13/11/2003 – Belo Horizonte.


O SÉCULO XX FOI TESTEMUNHA DE GRANDES TRANSFORMAÇÕES (grifo nosso). No mundo dos negócios, o acirramento da globalização dos mercados, a evolução da telecomunicação e informática, o desenvolvimento tecnológico, mudaram a vida das empresas, trazendo o fantasma da concorrência. Nesse cenário, ressurge a figura do “cliente”, como entidade soberana, capaz de definir quem fica e quem sai do mercado. Estudos e técnicas são avidamente desenvolvidos e consumidos para aperfeiçoar formas de satisfazer o cliente, ouvi-lo, fidelizá-lo, perceber suas necessidades, antecipa-las, agregar valor aos produtos, surpreendê-lo, conquistá-lo.


Não estão erradas as organizações e o futuro não aponta para realidade diferente. O CLIENTE APRENDEU A RECONHECER E EXIGIR QUALIDADES NOS PRODUTOS (grifo nosso). Ele não quer apenas qualidade intrínseca; ele quer valor agregado, rapidez, atendimento personalizado, pagamento facilitado, promoções, troca, manutenção etc. IDÊNTICA ANÁLISE, PORÉM, NÃO PODE SER FEITA QUANDO SE TRATA DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO PAGO, PARTICULARMENTE, AS DE ENSINO SUPERIOR (grifo nosso). Grande parte da educação superior em todo o mundo é financiada por mensalidades escolares. No Brasil, cerca de dois terços da população universitária estão nas escolas privadas. Inúmeras vezes, professores da rede privada têm se queixado de ser “lembrados” pelos alunos que “eles” são seus clientes, porque sua mensalidade paga os salários dos professores.


O ambiente universitário, porém, merece melhor análise. O ALUNO, AO ASSINAR UM CONTRATO COM A INSTITUIÇÃO, ASSUME UMA RELAÇÃO DE COMPROMISSO, OBRIGAÇÕES. ISSO PODE GERAR SITUAÇÕES DE TENSÃO E PRESSÕES. OCORRE QUE, EM GERAL, AS “PRESSÕES” QUE OS ALUNOS EXERCEM NÃO VISAM À MELHORIA DA QUALIDADE DO ENSINO, MAS AO ATENDIMENTO DAS SUAS NECESSIDADES IMEDIATAS, MEDIOCRIZANDO, SIGNIFICATIVAMENTE, A SUA PRÓPRIA FORMAÇÃO. VEJAMOS ALGUNS EXEMPLOS: PROVAS (ADIAR, FAZER EM GRUPOS, COM CONSULTA, SUBSTITUIR POR TRABALHOS), FREQÜÊNCIA (FALTAR À AULA, CHEGAR TARDE E/OU SAIR CEDO E “GANHAR” PRESENÇA INTEGRAL), ATIVIDADES (ATRASAR ENTREGA DE TRABALHOS, FLEXIBILIZAR EXIGÊNCIAS, PRAZOS), ENTRE MUITOS OUTROS. PORÉM URGE PERGUNTAR: É O ALUNO O CLIENTE DE UMA INSTITUIÇÃO DE ENSINO PAGO? (grifo nosso). Cremos que uma resposta afirmativa a essa pergunta, embora tenha grande consenso na comunidade universitária, é fruto de uma análise superficial, equivocada e prejudicial para todos: aluno, professores, instituição. Inicialmente, as instituições de ensino pago têm objetivos e produtos diferentes das organizações empresariais, chamadas utilitárias (comércio e indústria). Enquanto estas são centradas nos objetivos econômicos, calculistas, as universidades (organizações normativas) se baseiam no envolvimento moral, motivacional de seus membros, objetiva à formação das pessoas e tendem a construir seus próprios objetivos e valores.


Outra questão é a lógica na qual está inserida a satisfação do cliente: atendimento e bem-estar imediato. Ao adquirir um bem, o cliente tem direito de ser atendido eficientemente, levar o melhor produto, pagar o menor preço, no menor tempo e sem burocracia. Ele não pode perder tempo, nem se desgastar com sua compra. APLICAR ESSA LÓGICA À SALA DE AULA SIGNIFICA QUE O PROFESSOR DEVERÁ SATISFAZER O ALUNO TODOS OS DIAS: ATENDER ÀS SUAS REIVINDICAÇÕES, SEUS DESEJOS, RESOLVER SEUS PROBLEMAS. E MAIS: NÃO PODER REPROVÁLO, SE ELE TIVER PAGO A MENSALIDADE EM DIA! ISSO SIGNIFICA TRANSFERIR PARA O ALUNO A DECISÃO “DO QUÊ” APRENDER, “COMO APRENDER”, “QUANDO”, E, MESMO, “SE” ELE QUER APRENDER ALGUMA COISA NO CURSO (grifo nosso). Talvez, ele fique mais satisfeito, porque as atividades curriculares não são sempre prazerosas. Nas mais das vezes, são pesadas, cansativas, requerem esforço, raciocínio, dedicação, tempo; e, não necessariamente, são do interesse imediato do aluno. MAS, NÃO SE PODE CONFUNDIR “ADQUIRIR” CONHECIMENTO COM “COMPRAR” CONHECIMENTO (grifo nosso). Vejamos a analogia com a situação de um doente que procura ajuda médica. A pessoa paga a consulta e recebe uma receita e orientação de procedimento. A receita e as orientações são, apenas, parte da solução. A cura dependerá da postura, das providências, da vontade e responsabilidade do paciente em seguir corretamente as instruções. Da mesma forma, a formação profissional do aluno é o resultado do “casamento” entre os recursos que a escola oferece (professores, atividades, equipamentos, conhecimento) e o esforço dele em se transformar (vontade, dedicação, motivação, trabalho).


PARA SE TORNAR UM PROFISSIONAL DISPUTADO PELO MERCADO DE TRABALHO, O ALUNO NECESSITA ADQUIRIR UM CONJUNTO DE COMPETÊNCIAS, CONHECIMENTO, HABILIDADES, CAPACIDADES, CONSCIÊNCIA E FORMAÇÃO POLÍTICA, ÉTICA E CIDADÃ. ELE NÃO VAI À ESCOLA ADQUIRIR UM PRODUTO; O ALUNO “É” O PRODUTO. É “ELE” QUEM PRECISA TER QUALIDADE, INSTRUÇÃO, FORMAÇÃO E INSTRUMENTALIZAÇÃO. AS ATIVIDADES, OS PROFESSORES, OS EQUIPAMENTOS E O CONHECIMENTO SÃO INSTRUMENTOS DE CONSTRUÇÃO DESSE PRODUTO (grifo nosso).


FORMAÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL NÃO SÃO PRODUTOS TANGÍVEIS; NÃO PODEM SER “VENDIDOS” COMO CEREAIS EM PRATELEIRAS DE SUPERMERCADOS. É TAREFA NOBRE; PROCESSOS LONGOS, INTERNALIZADOS, NUMA RELAÇÃO PROFESSOR/ALUNO, NEM SEMPRE LEVE E FÁCIL. NÃO TRAZ SATISFAÇÃO IMEDIATA, MAS, É FUNDAMENTAL PARA SEU CRESCIMENTO E FORMAÇÃO. O OBJETIVO DA UNIVERSIDADE É FORMAR O MELHOR PROFISSIONAL PARA OCUPAR A MELHOR POSIÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO. SEU “CLIENTE” NÃO É, PORTANTO, O ALUNO, É O “MERCADO DE TRABALHO”. ESTE, SIM, TEM QUE FICAR SATISFEITO COM A SUA AQUISIÇÃO. E NÃO SE PODE PERDER DE VISTA QUE O MERCADO ESTÁ CADA DIA MAIS EXIGENTE (grifo nosso). Por isso, há que se esclarecer o “aparente” paradoxo: deve a universidade oferecer satisfação imediata ou proporcionar formação integral aos seus alunos? Estes são clientes ou matéria-prima em transformação?


Devemos nos aprofundar nessa discussão, envolvendo, inclusive, o aluno, pois, não se pode negar o risco real que há de um cliente insatisfeito se recusar a pagar pelo bem adquirido. Em tempos pouco remotos, as universidades selecionavam os alunos que queriam ter em seus quadros. Atualmente, o ensino universitário brasileiro vive preocupantes sinais de ociosidade de vagas e inadimplência. O aluno, hoje, escolhe em qual universidade vai estudar; e o mercado, a universidade que vai formar seus profissionais. À MEDIDA QUE O MERCADO REJEITAR UM PROFISSIONAL, REJEITADA SERÁ A INSTITUIÇÃO DE ENSINO QUE O FORMOU, ASSIM COMO, REJEITADOS SERÃO OS PROFESSORES RESPONSÁVEIS PELA FORMAÇÃO DESSE PROFISSIONAL (grifo nosso).

O ABANDONO DOS IDEAIS

POR OLAVO DE CARVALHO / 09/12/2006)


(RESUMO: Texto na integra em: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/ideais.htm#21)


Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e requintada decadência: o barbarismo artificial.

Se a coisa desprovida de nome é, por acaso, alguma realidade espiritual elevada, um valor excelso ou aspiração suprema da alma — uma dessas coisas essenciais que se pode expulsar da consciência, mas não da existência —, é natural que sua reencarnação obscura assuma, mais ainda, as feições do terrível, do informe, do monstruoso.

É algo assim que acontece com aquela coisa designada pela palavra "ideal" — uma palavra obviamente fora de moda, cujo significado perde realidade com a rapidez com que perde sangue um decapitado.

Denomina-se "ideal" a síntese em que se fundem, numa só forma e numa só energia, a idéia do sentido da vida e a do preço de sua realização: diz-se que um homem tem um ideal quando ele sabe em qual direção tem de ir para tornar-se aquilo que almeja, e quando está firmemente decidido a ir nessa direção.

Complexo de impulso e de esquema, o ideal atrai como um imã e coordena como um eixo. Pela unidade de sua forma, convoca o sinergismo da vontade: a concorrência de todas as forças para a consecução da meta. Pelo seu caráter de síntese projetada para o futuro, ergue-se como um tribunal soberano e neutro para a arbitragem de todos os conflitos do presente, que ali se resolvem e superam de modo que mesmo as tendências mais antagônicas da alma possam convergir num só ímpeto ascensional.

O ideal é, por isto, condição indispensável para a coesão da personalidade, que sem ele se dispersa em aspirações fortuitas e esforços estéreis. Miragem e emblema, sua visão nos dinamiza, nos eleva e enobrece, e é sempre a lembrança do seu apelo que nos reergue após cada erro e cada desengano. O ideal é semente de juventude e revivescência. Tem um poder coordenante voltado para o futuro, um poder curativo voltado sobre o passado.

É ainda pela força do ideal que o homem transcende o sono entorpecido da subjetividade intra-orgânica, das falsas idéias e aspirações que não são senão a secreção passiva da fisiologia, para despertar a um mundo de realidades objetivas que a inteligência discerne e que a consciência moral obriga a reconhecer; é assim que a alma se liberta do poço escuro da individualidade estanque, para elevar-se ao mundo maior da sociedade, da cultura, da vida moral, ao sentimento do universo e ao desejo de Deus.

Sem a síntese, que o ideal opera, entre o impulso de universalidade e os interesses do organismo psicofísico, não haveria meio de fazer um homem sacrificar-se, impor-se restrições, contrariar desejos e reprimir temores, em prol de algum valor moral, social ou religioso, para alcançar sua plena estatura humana e tornar-se, talvez, maior do que ele mesmo. Mas o desejo, que move a alma, não pode ser despertado por uma simples idéia abstrata, por verdadeira que seja; ele necessita de imagens plásticas, sensíveis, que lhe dêem como que uma presença antecipada do seu objetivo. Também não se move, exceto no homem grosseiro, ao simples apelo de uma imagem atrativa; mas aguarda que a inteligência examine e aprove o objeto como desejável e bom. Não basta que a meta seja verdadeira; é preciso que seja bela. Mas não basta que seja bela; é preciso que seja verdadeira e justa. É a síntese desta tripla exigência, intelectual, estética e moral, que se denomina "ideal". Ele concilia, no homem, o desejo de auto-afirmação, de autodefesa, de permanência, com o impulso de crescimento, de doação e de superação de si. Ele dá uma significação universal às tendências individuais, e põe estas a serviço daquela. Spencer falava dos sentimentos "ego-altruístas", intermediários entre o egoísmo e o altruísmo; neles, uma satisfação dada a si mesmo é, indireta porém voluntariamente, ocasião de benefício para os outros. O ideal extrai grande parte do seu dinamismo dessa pulsação ego-altruísta, em que a felicidade de um homem se identifica com o bem dos demais. O ideal é como o fogo em que se transfunde, no forno alquímico da alma, o egoísmo em altruísmo, a paixão reflexa em ação refletida.

(...) Sem um ideal definido, todas as melhores aspirações não passam de sonhos, porque não há um dever moral imanente a exigir que se amoldem à realidade, que se limitem em extensão para realizar-se em intensidade. Só o homem idealista é realista; os demais são sonhadores ou cínicos. Não tendo uma medida do que as coisas deveriam ser, vêem-nas melhores ou piores do que são.

Ademais, para que as qualidades latentes possam se manifestar, é necessário um esforço constante numa direção definida; sem ideal, o esforço gasta-se em gestos reativos, momentâneos e sem proveito. O ideal é a bússola que assinala para a alma uma direção firme e constante por entre as incertezas. Por isto, o sentimento de insatisfação, de vazio e de tédio que experimentamos quando traímos ou esquecemos o ideal é o sinal de alarma que nos permite corrigir o rumo e reencontrar o sentido da vida.

(...) O ideal é a coluna mestra e a força da personalidade. Traí-lo ou esquecê-lo é entregar-se, de ossos quebrados, nas mãos da contingência e do absurdo.

Quando, porém, a traição é demasiado grave, extensa, profunda, o sinal de alarma já não soa mais: o clamor da consciência moral imanente tornou-se tão penoso que a alma o reprime, lacrando-o sob a tampa do subconsciente, ao mesmo tempo em que procura inventar toda sorte de razões, de pretextos factícios e ocasionais, para justificar o mal-estar e o tédio, ou encontra um bode expiatório sobre o qual despejar seu rancor de si mesma. A repressão da consciência moral, como demonstrou Igor Caruso3, está na base de muitos distúrbios neuróticos. A neurose apóia-se num complexo jogo de racionalizações e compensações que falseia completamente a posição existencial do indivíduo, como uma bússola viciada. E, já que a consciência, por definição, é coesão — com + scientia = reunião da ciência4 —, e uma lei constitutiva impede que suas partes funcionem separadas, logo o escotoma defensivo se alastra para outros campos e acaba por obliterar toda a visão, mesmo em áreas que nada têm a ver diretamente com o conflito que lhe deu origem. O empenho de conservar então um mínimo indispensável de realismo, necessário à vida social e prática, é obstaculizado pelo esforço de não enxergar uma determinada área, circunscrita como tabu; o curto-circuito daí resultante produz considerável perda de energias, enfraquecendo a capacidade intelectual e decisória. A vítima torna-se cada vez mais inepta para o ato de humildade que lhe devolveria o ideal perdido e o sentido da vida ( ser humilde não é outra coisa senão aceitar a realidade; como diz Schuon, "ser objetivo é morrer um pouco" ).

Na psicologia e psicoterapia de Paul Diel5, a divindade é a imagem ideal que orienta todos os esforços para a auto-realização das qualidades superiores do homem. Pouco importa que, teologicamente, ela seja muito mais do que isto, pois, para o indivíduo, a divindade real e objetiva só é acessível através da sua imagem pessoal de Deus, e é justamente esta é a base da qual tem de partir todo ensino religioso que não seja mera lavagem cerebral. Psicologicamente, porém, o interesse maior não reside na veracidade teológica da imagem, porém na sua ação catalizadora sobre a massa das forças psíquicas. Encarado psicologicamente ou teologicamente, o ideal de perfeição humana sugerida pela imagem do divino é a meta obrigatória e universal da existência humana sobre a terra, e a perda deste ideal é, segundo Diel, a causa das neuroses. O ideal da perfeição pode ser corrompido ou desviado, basicamente, de duas maneiras. Diel chama-as exaltação imaginativa e banalização. São processos opostos, sucessivos e complementares.

A exaltação imaginativa é um estado em que a mente, embevecida com o seu ideal, se identifica mais ou menos inconscientemente com ele e atribui a si as perfeições que a ele pertencem, como se já as tivesse realizado. Para Diel, o símbolo por excelência da exaltação imaginativa é o vôo de Ícaro. As asas de cera representam a força da imaginação, que só pode elevar aos ares um corpo imaginário. O exaltado toma o potencial por atual, imaginando possuir as perfeições a que aspira. Por isto mesmo, sua alma experimenta, como num choque de retorno, um sentimento de estranheza e de impotência perante o mundo, que não cede, como ele esperava, aos seus encantos ou poderes. Acuado pelas exigências da realidade, ele exacerba ainda mais sua adoração de si mesmo diante de um mundo que ele julga vil, mesquinho e incompreensivo, quando na verdade é ele mesmo quem não compreende o mundo e, por não compreendê-lo, está impotente para agir nele. É a síndrome do "jovem incompreendido", que, pela simples razão de ter aspirações elevadas — ou que lhe pareçam elevadas — já se sente ipso facto superior ao seu ambiente e, portanto, limitado ou coagido pela mesquinhez real ou aparente dos pais, da escola, da sociedade, do emprego, etc6. Nem sempre ele declara seu sentimento em voz alta; uma vaga intuição do caráter doentio do seu estado pode envolver este sentimento numa complexa rede de disfarces, atenuações e racionalizações muito difícil de deslindar. Também é certo que seu diagnóstico depreciativo sobre o mundo em torno pode ser, em si mesmo, objetivamente verdadeiro, sendo falso apenas o lugar e a função que ocupa na sua alma, já que a degradação do mundo lhe aparece, por vezes ao menos, como uma espécie de contraprova de suas próprias qualidades excelsas7.

Não raro o doente alia-se a outros jovens imbuídos do mesmo sentimento, em busca de apoio e confirmação de suas queixas contra o mundo. A comunidade de sentimentos e a repetição das queixas, criando uma atmosfera de comprovação intersubjetiva, parece dar consistência real ao diagnóstico distorcido e subjetivista que cada um dos membros do grupo faz quanto ao estado do mundo, legitimando seu discurso contra a mediocridade e grosseria das pessoas "de fora". "Estar dentro" do grupo é então sinal de uma espécie de eleição, a prova de uma qualidade excelsa e incomunicável. O sentimento de ter acesso a algo misterioso, profundo, especial, pode exacerbar a exaltação imaginativa ao ponto de provocar uma verdadeira ruptura com a realidade ambiente, incapacitando o indivíduo para o cumprimento dos deveres sociais mais elementares8. Quando a exaltação imaginativa chega a efeitos tão profundos, é que o doente já se encontrava à beira de um colapso intelectual e social, contra o qual provavelmente terá sido advertido pelos pais, por amigos, ou por uma infinidade de sinais diretos e indiretos. Estes sinais, por sua vez, aguçam a sensação de estar afundando no completo isolamento e na impotência; e o pressentimento de abandono, às vezes mesmo de loucura e morte, contrasta tão dolorosamente com os primeiros vôos de exaltação imaginativa, que o doente é então tentado a buscar às pressas, como tábua de salvação, algum tipo de reintegração forçada no mundo que desprezava9. Como, porém, isto implicaria a humilhação de voltar atrás nas críticas e a renúncia à independência afetada, a mente só consegue a reintegração forçada mediante o artifício de operar uma inversão de valores: ao invés de abandonar somente a atitude de auto-exaltação, passando a uma postura de humildade perante o ideal, ela vai, ao contrário, desidentificar-se do ideal para poder abandoná-lo sem perder o sentimento de sua própria superioridade. Conserva, assim, sua auto-exaltação, mas sob uma forma destituída de conteúdo pretensamente idealístico, e revestida, agora, de uma pose de "realismo" terra-a-terra, e não raro de maquiavelismo, carreirismo profissional, cinismo, materialismo, etc. É a esta atitude que Diel denomina banalização.

(...) Então, "no terceiro estágio da inibição protetora, a fase ultraparadoxal, as respostas e o comportamento positivos começam, de repente, a se transformar em negativos, e os negativos em positivos". As mudanças de opinião nesta fase, e as justificativas aparentemente lógicas que o doente oferece a si mesmo e aos outros, não são senão o disfarce exterior de um processo que tem suas raízes numa sobrecarga de estimulação neuronal; são um "vestido de idéias" em torno de motivos reflexos, que permanecem subconscientes.

Na banalização, o indivíduo amortece então sua sensibilidade para todas as deficiências, injustiças e feiúras que, no seu tempo de idealismo exaltado, lhe pareciam revoltantes e intoleráveis. É que antes ele via as feiúras somente no mundo exterior e, como não as enxergava em si mesmo, as condenava "desde cima". Agora, ele as admite dentro de si; porém, como são suas e se identifica com elas, ele as defende como sinais de superioridade; não raro afeta uma atitude de soberano desprezo por aqueles nos quais se mantém viva a antiga sensibilidade moral; e, acusando-os de rancorosos, frustrados ou coisa assim, ele se compraz no seu novo estado de "homem ajustado" e — no seu entender — adulto. A banalização consiste neste nivelamento-por-baixo do sentimento moral e estético.

(...) George Orwell, no seu romance 1984, descreve um caso em que, passando por este gênero de mutação, as testemunhas mesmas da inocência de um acusado depõem pela sua condenação. A mutação pode resultar então em total atomização do comportamento e acarretar, com a perda da integridade psíquica, a dissolução dos padrões morais mais elementares, produzindo o cinismo, a amoralidade, o descaramento, aliados, às vezes, a boas doses de autopiedade.

Analisando os conceitos de Diel com os critérios de Caruso16, vemos que a neurose do idealista exaltado tem sua origem na soberba, pois o ego, ao identificar-se com a imagem do ideal, atribui a si mesmo, atual e efetivamente, qualidades que só lhe pertencem de modo virtual e por espelhismo. É uma forma de autolatria. Quando os teólogos dizem que a soberba é a raiz de todos os pecados, é isto o que eles têm em vista: o idealista exaltado corrompe o bem na sua própria raiz, corrompe-o na medida em que tem por ele um amor egoísta. Sto. Agostinho diz que "todos os vícios se apegam ao mal, para que se realize; só a soberba se apega ao bem, para que pereça".

A banalização é o momento mais grave do processo corruptivo. É claro que a alma doente só consegue operar esta transformação na medida em que não conscientiza todos os passos do processo e todas as implicações de seus atos e decisões, mas se enreda numa trama de racionalizações e sofismas, destinada a erguer ante seus próprios olhos um simulacro verossímil de inocência, no instante mesmo em que, traindo a vocação humana, trai o sentido da vida17.

É interessante observar que, quando o doente vai da exaltação à banalização, ele passa a representar perante si mesmo o papel de homem realista e "maduro", revestida de pose de segurança afetada, destinada a reforçá-lo no novo papel. Daí que ele seja o último a perceber que a sua aparente superação da revolta juvenil vem acompanhada, não de um acréscimo de equilíbrio e força, porém de um decréscimo das capacidades intelectuais e de uma degenerescência nervosa similar à que se vê na involução senil.

(...) A evolução da vida afetiva "segue a ordem que vai do simples ao complexo: necessidades, inclinações egoístas, inclinações ego-altruístas, inclinações altruístas, inclinações ideais"19. Porém, em certas enfermidades da evolução lenta, como a paralisia geral dos sifilíticos e também da degenerescência senil, observa-se um movimento inverso.

(...) "Em alguns enfermos — assinala Challaye — pode-se comprovar a desaparição momentânea das tendências ideais, altruístas, e mesmo ego-altruístas. Isto é comprovado sobretudo na maioria dos anciãos ( fora do caso, é claro, dos seres superiores, nos quais esta degenerescência sentimental pode não se produzir ). Sua vida afetiva se restringe cada vez mais. Os sentimentos impessoais são os primeiros que desaparecem. Logo em seguida, as diversas formas da simpatia; e as necessidades ( econômicas, orgânicas, etc. ) são as que subsistem por mais tempo. O ancião começa a preocupar-se menos com a ciência e a arte... torna-se menos generoso... as emoções que persistem maior tempo estão ligadas à conservação pessoal, à cólera e ao medo. Enfim, o ancião pode já não ter nada mais que necessidades ; ele recai no estado do menino pequeno".

No homem banalizado, a nova sensibilidade que ele desenvolve pelo seu interesse material imediato, aliada ao temor da perda e ao crescente desinteresse pelos ideais, atestam, fora de toda dúvida, que aquilo que lhe parece ou que ele tenta fazer parecer uma superação é na verdade uma queda, uma degenerescência que se estende, até mesmo, ao domínio corporal.

(...) Quando, ao contrário, a sociedade perde de vista os valores e princípios universais e se emaranha na busca obsessiva de soluções para problemas econômicos imediatos, estes parecem não somente multiplicar-se no campo dos fatos, mas invadir as almas dos indivíduos, ocupando todo o espaço que poderia ser dedicado aos valores ideais. Automaticamente, os indivíduos refluem as suas energias para a busca de interesses que são conflitantes com os de outros indivíduos e grupos — com os quais somente os valores ideais poderiam estabelecer uma base de colaboração — e a sociedade se dispersa numa atomização que pode beirar a anarquia, a guerra de todos contra todos, a deslealdade generalizada. É evidente que, neste caso, os instrumentos para a realização da vocação humana simplesmente desaparecem do cenário social, com o que justamente as pessoas de maior sensibilidade ética, não encontrando vias de realização, passam a constituir uma horda de fracassados e desajustados. É nessa horda que os falsos ideais, criados de improviso para atender a interesses de grupos ou organizações, encontram seus mais fervorosos recrutas, oferecendo-lhes uma miragem de valores e uma falsa promessa de ajustamento social e de participação.

(...) A alma, colocada sob a pressão esmagadora e multilateral das forças que, pela lisonja ou pela acusação, pelas promessas ou ameaças, a comprimem e a dilatam, ora para a exaltação imaginativa, ora para o ajustamento banalizado, pode agarrar-se a este simulacro, com toda a fúria e o desespero de um náufrago. Numa sociedade empobrecida, fortemente empenhada em reduzir à proletarização a totalidade dos seus membros e na qual, ademais, todos os instrumentos de defesa espiritual e religiosa foram substituídos pelas multinacionais da pseudomística e todos os instrumentos de defesa cultural pelo vozerio onipresente e obsedante das comunicações de massa, nesta sociedade, o drama acima descrito atinge um máximo de intensidade que deixa entrever nada menos que um desenlace trágico, com a desumanização brutal da população e a redução da vida social a um jogo cego de interesses mesquinhos em disputa, ocultamente orquestrado e dirigido, desde o topo, por um sinistro grupo de planejadores sociais.

Por todos os meios, esta sociedade espremerá como entre os dois dentes de um alicate todos os talentos e ideais nascentes, até esmagá-los e subjugá-los à bestialidade dominante.

No entanto, apesar das pressões maciças e de todos os atrativos corruptores, a inteligência humana, por sua natureza mesma, continua essencialmente livre e capaz de objetividade e universalidade. E se é fato que "chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade", não é menos verdade que está somente nas mãos de cada qual dizer a este mundo sedutor e ameaçador: Latrare potest, mordere non potest, nisi volentem: "Podes latir, mas não podes morder, a não ser que eu o deseje". Mesmo as pressões mais formidáveis que o universo concentracionário impõe à alma humana, na mais temível das tiranias já conhecidas, não eximem o homem de sua responsabilidade individual.

Todos aqueles em quem ainda reste um grão de consciência das metas reais e superiores da existência humana têm o dever imediato e indeclinável de estudar, conhecer e desmascarar os mecanismos do processo corruptor aqui descrito, para escapar aos falsos conflitos em que ele nos joga e às falsas alternativas que ele nos oferece.