quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

PORQUE NÓS ODIAMOS

UMBERTO ECO

The New York Times


Nos últimos anos, tenho escrito sobre racismo, a construção psicológica do inimigo e a função política de expressar aversão pelo "outro" ou desprezo pelo conceito de diversidade. Eu pensava que já havia dito tudo o que eu tinha que dizer sobre o assunto, mas durante uma conversa recente com meu novo amigo Thomas Stauder, alguns poucos pontos novos emergiram - ou, pelo menos, eles pareceram novos para mim. Foi uma daquelas discussões após a qual você não consegue relembrar muito bem quem disse isto ou quem disse aquilo, mas as nossas conclusões coincidiram.

As pessoas têm a tendência, com uma certa insensatez pré-socrática, de ver o amor e o ódio como dois opostos necessárias e alternativas simétricas uma para a outra. O que quer dizer que, se nós não amamos alguma coisa, então nós devemos odiá-la, e vice versa. Obviamente, entretanto, existem infinitos graus de nuances entre os dois pólos. Mesmo se nós usarmos os termos metaforicamente, o fato de que eu adoro pizza mas o não sou louco por sushi não significa que eu odeie sushi - eu simplesmente gosto menos dele do que de pizza. O fato de que eu ame alguém não significa que eu odeie todos os demais; o oposto do amor poderia facilmente ser indiferença. Eu amo os meus filhos, e eu sou indiferente ao motorista de táxi de que me apanhou há um par de horas.

AMOR EGOÍSTA

Mas a verdadeira questão aqui é que alguns tipos de amor são isolantes, exclusivos. Se eu estou loucamente apaixonado por uma mulher, eu espero que ela ame a mim e não a outra pessoa (ou pelo menos não da mesma maneira). Da mesma forma, uma mãe sente um amor passional por seus filhos e quer que eles a amem de uma maneira especial, e ela nunca iria sentir-se compelida a amar os filhos de outras pessoas com a mesma intensidade. Desse modo, do seu próprio jeito, o amor é egoísta, seletivo e possessivo.

É claro que, existe o mandamento que nos orienta a "amar" os nossos semelhantes - todos os 7 bilhões deles - como nós amamos a nós mesmos. Mas, na prática, este mandamento nos orienta a não odiar ninguém; ele não espera que amemos a um estranho do mesmo modo que nós amamos aos nossos pais ou nossos netos.

Eu amo o meu neto mais do que, vamos dizer, um caçador de foca com quem eu nunca encontrei. Isto não quer dizer que não faria nenhuma diferença para mim se um homem do outro lado do mundo morresse, mas eu sempre deverei ficar mais tocado pela morte de minha avó do que a de um estranho.

O MESMO FOGO

A aversão, por outro lado, pode ser coletiva; na verdade, sob regimes totalitários em particular, ela deve ser coletiva. Quando eu era uma criança, o Partido Fascista incitava-me a odiar todos os filhos de Albion (NT - designação simbólica dada a Inglaterra), e toda noite no rádio Mario Appelius (NT - jornalista e radialista fascista italiano) iria recitar o seu mantra "Que Deus amaldiçoe os ingleses."

Isto é o que os ditadores e os populistas querem - e as religiões também, entre as suas facções fundamentalistas - porque a aversão a um inimigo comum une as pessoas e as fazem arder em conjunto com o mesmo fogo.

O amor aquece o nosso coração com relação a apenas umas poucas pessoas selecionadas; já a repulsa incendeia os corações com relação a todos ao nosso redor, e pode mobilizar um grupo para discriminar contra milhões: uma nação, um grupo étnico, pessoas cuja pele é de uma cor diferente da nossa ou pessoas que falam outra língua.

Um racista italiano pode detestar todos os albaneses ou romenos ou ciganos. Umberto Bossi, o líder do Partido da Liga do Noroeste da Itália, odeia todos os italianos do Sudoeste (e uma vez que o seu salário é pago, em parte, pelos impostos cobrados da população do Sudoeste, esta é na verdade uma obra prima da malevolência, reunindo o ódio com o prazer de adicionar o insulto à injúria).

ÓDIO GENEROSO

Quando era primeiro ministro, Sílvio Berlusconi deixou claro que ele detestava juízes e clamava o povo italiano a fazer o mesmo - e a odiar todos os comunistas também, mesmo que isso significasse conjurar visões dos mesmos onde eles na verdade nem existem mais.

O ódio e a aversão, desse modo, não são individualistas, mas generosos e inclusivos, abraçando multidões em um simples fôlego. Unicamente nos romances e nas novelas nos é dito que é lindo morrer por amor; e usualmente o herói mais digno de consideração é aquele que encontra o seu fim enquanto enfrenta o vilão - o inimigo odiado.

A história da nossa espécie tem sido marcada muito mais pelo ódio, guerras e massacres do que por atos de amor, que são inerentemente menos confortáveis e também de certo modo cansativo caso ousemos estende-los para além do círculo imediato do nosso egoísmo. A nossa atração pelas delícias da aversão é tão natural que líderes manipuladores não encontram dificuldades em cultivá-la; enquanto isto, de tempos em tempos parece que nós somos encorajados a amar, unicamente por conta de personagens da ficção que tem o desconcertante hábito de beijar leprosos.

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UMBERTO ECO É ESCRITOR, FILÓSOFO, SEMIÓLOGO E LlNGUISTA. SEU LIVRO MAIS RECENTE É ON UGLINESS (SOBRE A FEIURA). ELE TAMBÉM É AUTOR DOS BEST-SELLERS O NOME DA ROSA, BAUDOLINO E O PÊNDULO DE FOUCAULT, ENTRE OUTROS.


TRADUÇÃO: AUGUSTO QUEIROZ


Fonte: Jornal A Tarde (Salvador-Ba. - segunda feira – 5/12/2011 – caderno Mundo, B9)