quarta-feira, 29 de setembro de 2010

CONFISSÕES

Publicado por socioblogue - agosto. 20, 2003 / 05:10 AM


Pedro Lomba (Flor de Obsessão), evocando Eco, acaba de escrever um apontamento sobre como se faz uma tese. Diz assim: "acumulamos notas, referências, leituras indesejadas, bibliografias, parágrafos pesados, prosa deslavada, lemos, relemos, copiamos, inventamos, acorremos a bibliotecas, sabemos de cor a exacta localização dos livros, retemos dezenas de títulos na cabeça, lombadas, capas duras, apetece-nos muito fazer isto, não nos apetece nada fazer isto, sabemos para onde vamos, não sabemos o caminho, horas sentados, horas sem avançar, horas a pensar no romance que ficou em cima da cómoda, dúvidas, hesitações, algum sofrimento, uma imensa satisfação com o trabalho que fica feito, hoje somos produtivos, ontem tudo saiu a custo, hoje não sai nada, aprender a viver assim, erráticos, moles, de vez em quando despertos, de vez em quando muito vivos, muito capazes, depois o tédio, a amargura, a impossibilidade, largar a cadeira, o computador, a mesa de trabalho e caminhar, caminhar sempre". É assim que passo os meus dias. Boa parte deles. Quase todos eles. Foi por isso, também, que nasceu o Socio[B]logue. Quando digo também, entenda-se, quero dizer sobretudo.

PEÇA INFANTIL

Por Luiz Fernando Veríssimo.


QUEM ASSISTE A UMA PEÇA INFANTIL, COM AQUELAS CRIANÇAS TÃO ENGRAÇADINHAS, NÃO SABE DOS APUROS QUE A PROFESSORA PASSA PARA DIRIGIR OS ATOREZINHOS...


A professora começa a se arrepender de ter concordado (“Você é a única que tem temperamento para isto”) em dirigir a peça quando uma das fadinhas anuncia que precisa fazer xixi. È como um sinal. Todas as fadinhas decidem que precisam, urgentemente, fazer xixi.
-Está bem, mas só as fadinhas – diz a professora. – E uma de cada vez! Mas as fadinhas vão em bando para o banheiro.
-Uma de cada vez! Uma de cada vez! E você, onde é que pensa que vai?
-Ao banheiro.
-Não vai não.
-Mas tia...
-Em primeiro lugar, o banheiro já está cheio. Em segundo lugar, você não é fadinha, é caçador. Volte para o seu lugar.

Um pirata chega atrasado e com a notícia de que sua mãe não conseguiu terminar a capa. Serve uma toalha?
-Não. Você vai ser o único de capa branca. È melhor tirar o tapa-olho e ficar de anão. Vai ser um pouco engraçado, oito anões, mas tudo bem. Por que você está chorando?
-Eu não quero ser anão.
-Então fica de lavrador.
-Posso ficar de tapa-olho?
-Pode. Um lavrador de tapa-olho. Tudo bem.
-Tia onde é que eu fico?
É uma margarida.
-Você fica ali.

A professora se dá conta de que as margaridas estão desorganizadas
-Atenção, margaridas! Todas ali. Você não. Você é coelhinho.
-Mas o meu nome é Margarida.
-Não interessa! Desculpe, a tia não quis gritar com você. Atenção, coelhinhos. Todos comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. Lavradores daquele lado, árvores atrás. Árvore, tira o dedo do nariz.

Onde estão as fadinhas? Que xixi mais demorado.
-Eu vou chamar
-Fique onde está, lavrador. Uma das margaridas vai chamá-las.
-Já vou.
-Você não, Margarida! Você é coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá chamar as fadinhas. Piratas, fiquem quietos.
-Tia o que é que eu sou? Eu esqueci o que sou.
-Você é o sol. Fica ali que depois a tia... Piratas, por favor!

As fadinhas começam a voltar. Com problemas. Muitas se enredaram nos seus véus e não conseguem arrumá-los. Ajudam-se mutualmente, mas no seu nervosismo só pioram a confusão.
-Borboletas, ajudem aqui – pede a professora.

Mas as borboletas não ouvem. As borboletas estão etéreas. As borboletas fazem poses, fazem esvoaçar seus próprios véus e não ligam para o mundo. A professora, com ajuda de um coelhinho amigo, de uma árvore e de um camponês, desembaraça os véus da fadinha.
-Piratas, parem. O próximo que der um pontapé vais ser anão.

Desastre: quebrou uma ponta da lua.
-Como é que você conseguiu isso? – pergunta a professora sorrindo, sentindo que o seu sorriso deve parecer demente.
-Foi ela!

A acusada é uma camponesa gorda que gosta de distribuir tapas entre os seus inferiores.
-Não tem remédio. Tira isso da cabeça e fica com os anões.
-E a minha frase?

A professora tinha esquecido. A Lua tem uma fala.
-Quem diz a frase da Lua é, deixa ver... o relógio.
-Quem?
-O relógio. Cadê o relógio?
-Ele não veio.
-O que?
-Está com caxumba.
-Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que falar pela Lua. Sol, está me ouvindo?
-Eu?
-Você, sim senhor. Você é o Sol. Você sabe a fala da Lua?
-Me deu uma dor de barriga.
-Essa não é a frase da Lua.
-Me deu mesmo, tia. Tenho que ir embora.
-Está bem, está bem. Quem diz a frase da Lua é você.
-Mas eu sou caçador.
-Eu sei que você é caçador! Mas diz a frase da Lua! E não quero discussão!
-Mas eu não sei a frase da Lua.
-Piratas, parem!
-Piratas, parem. Certo.
-Eu não estava falando com você. Piratas, de uma vez por todas...

A camponesa gorda resolve tomar a justiça nas mãos e dá um croque num pirata. A classe é unida e avança contra a camponesa, que recua, derrubando uma árvore. As borboletas esvoaçam. Os coelhinhos estão em polvorosa. A professora grita:
-Parem! Parem! A cortina vai se abrir. Todos a seus lugares. Vai começar!
-Mas, tia, e a frase da Lua?
-“Boa noite, Sol.”
-Boa noite.
-Eu não estou falando com você!
-Eu não sou mais o Sol?
-É, mas eu estava dizendo a frase da lua. “Boa noite, Sol.”
-Boa noite, Sol. Boa noite, Sol. Não vou esquecer. Boa noite Sol...
-Atenção, todo mundo! Piratas e anões nos bastidores. Quem fizer um barulho antes de entrar em cena, eu esgoelo. Coelhinhos nos seus lugares. Árvores, para trás. Fadinhas, aqui. Borboletas, esperem a deixa. Margaridas, no chão.

Todos se preparam.
-Você não, Margarida! Você é coelhinho!

Abre o pano.



Fonte: VERÍSSIMO, Luiz Fernando. Festa de Criança. São Paulo. Ática. 2000.

Uma vez corrupto ... sempre corrupto

Entrevista com o psicoterapeuta JOÃO AUGUSTO FIGUEIRÓ
REVISTA ISTOÉ - em 10/09/2005

RESUMO: Segundo o psicoterapeuta JOÃO AUGUSTO FIGUEIRÓ , quem comete atos de corrupção tem um transtorno sem cura. "Uma pessoa sadia, do ponto de vista da personalidade, não pratica atividades ilícitas”



As pessoas que praticam atos de corrupção têm algumas características de personalidade em comum, descritas em compêndios de psiquiatria e psicologia. A afirmação é do médico e psicoterapeuta João Augusto Figueiró, 54 anos, pesquisador do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Os corruptos querem a satisfação imediata dos seus desejos sem medir conseqüências, não prestam atenção às necessidades dos outros e não se arrependem”, diz. De acordo com Figueiró, a tendência a transgredir as regras se mostra desde cedo, mas pode – e deve – ser controlada com medidas educacionais e limites. Isso porque, uma vez formado, o corrupto será sempre corrupto.

ISTOÉ – O corrupto sofre de alguma doença mental?
FIGUEIRÓ – A corrupção é uma doença social. Então, ele é um sociopata. Na psiquiatria, esse tipo de comportamento está dentro do que chamamos de transtorno da personalidade. O indivíduo não é normal porque tem uma personalidade doentia. Uma pessoa sadia, do ponto de vista da personalidade, não mata, estupra ou agride e não pratica atos ilícitos como a corrupção.


ISTOÉ – Quais transtornos de personalidade o corrupto manifesta?
FIGUEIRÓ– Os mais diretamente envolvidos são o anti-social, o narcísico e o borderline.


ISTOÉ – O que é o anti-social?
FIGUEIRÓ – Há um padrão de violação dos direitos dos outros, ocorrendo desde os 15 anos. Ele não segue a lei. Mente, usa desculpas e engana para o seu benefício pessoal ou prazer. É impulsivo, agressivo, não se preocupa com o bem-estar alheio, é indiferente ao sofrimento dos outros e não tem remorso.


ISTOÉ – E o borderline?
FIGUEIRÓ – É o sujeito que está no limite entre o normal e o patológico. Apresenta relações instáveis de amor e ódio. Hoje está com você, mas pode imediatamente se virar contra você.


ISTOÉ – Como o transtorno narcísico se mostra no corrupto?
FIGUEIRÓ – Ele se sente grandioso, com funções muito importantes. Vamos pensar, por exemplo, no ex-presidente Fernando Collor de Mello, associado a denúncias de corrupção: “Vou moralizar esse país”, ele costumava dizer. O indivíduo requer atenção excessiva e está sempre tirando vantagem em tudo. É arrogante e invejoso. Ou acredita que os outros o invejam.


ISTOÉ – Mas todos temos essas características em algum grau.
FIGUEIRÓ – O psicanalista Sigmund Freud disse que o normal e o patológico são variações de intensidade das mesmas qualidades. Portanto, a qualidade que um portador de transtorno de personalidade tem eu também tenho. Mas o que Freud diz é que um neurótico sonha com o que o psicopata faz. Posso sonhar que roubei o Banco do Brasil, comprei uma casa. Tenho prazer nisso. Mas acordo e não vou assaltar o banco porque a minha moral e a minha ética me impedem.


ISTOÉ – Qual a origem desses transtornos?
FIGUEIRÓ – Depende. No transtorno anti-social existem questões genéticas envolvidas. Outros, como o narcísico, estão mais ligados às vivências do indivíduo. Se desde pequeno o corrupto em formação cair em um ambiente rígido, disciplinador, essa conduta terá uma probabilidade muito menor de se expressar. Mas existem famílias nas quais os bons hábitos são desencorajados.

ISTOÉ – Por esse raciocínio, em uma família na qual há corruptos é provável que ocorra uma geração de pessoas influenciadas por esse comportamento?
FIGUEIRÓ– Exatamente. Outro aspecto que colabora para isso é a cultura. Uma cultura como a nossa facilita a expressão de disposições morais ou genéticas de agir erradamente. No Brasil existem uma tolerância e uma falta de punição, de interdição, à ação transgressora.

ISTOÉ – O corrupto tem cura?
FIGUEIRÓ – Os transtornos de personalidade são intratáveis, incuráveis e irreversíveis.

ISTOÉ – Na menor brecha, o comportamento volta?
FIGUEIRÓ – Sim. Se o corrupto continuar no poder, a chance de repetir seus atos é total. E é importante ver o seguinte: ele trabalha psicologicamente com uma coisa que se chama projeção. Coloca no outro aquilo que é seu. O deputado Roberto Jefferson, envolvido em denúncias de corrupção, age exatamente como o escorpião ao qual comparou o ex-ministro José Dirceu. Uma vez desagradado, ataca. (O entrevistado se refere à acusação feita por Jefferson ao ex-ministro da Casa Civil, a quem chamou de escorpião. O parlamentar citou a fábula do escorpião e do sapo. O animal levava o escorpião nas costas para ajudá-lo a cruzar um rio, apesar do medo de ser picado. Embora tenha ajudado, foi picado porque o escorpião não conseguiu ir contra sua natureza).

ISTOÉ – Não existe possibilidade de haver um corrupto arrependido?
FIGUEIRÓ – Na verdade, há uma, quando tem perdas. Se você perguntar ao Collor se faria tudo do mesmo jeito, pode ser que diga que não porque perdeu o cargo. Mas essa resposta é algo absolutamente auto-referente, não por consideração ao outro.

ISTOÉ – Já que o corrupto é portador de um transtorno de personalidade, na ótica da psiquiatria a sociedade deve enxergá-lo como um doente e manifestar compaixão?
FIGUEIRÓ – Não, ele não merece complacência. Precisa ser contido. Se atua politicamente, deve-se contê-lo no contexto da política, tornando-o inelegível, por exemplo. E todos devem responder por seus atos na Justiça.

ISTOÉ – Qual a incidência desses transtornos na população?
FIGUEIRÓ – Estima-se que a de personalidade anti-social seja de 1% a 3%. Mas entre políticos a incidência é muito mais alta do que na população em geral. Por quê? São pessoas narcísicas, que buscam o poder.

ISTOÉ – Existe outra categoria profissional na qual a corrupção se expresse com mais freqüência?
FIGUEIRÓ– Entre os policiais. TUDO AQUILO QUE SE APROXIMA DA CRIMINALIDADE ATRAI O CORRUPTO

(OBS: Com certeza também as carreiras jurídicas e os Cursos de Direito - Observação deste BLOG)


ISTOÉ – Quais os recursos para evitar novas gerações de corruptos?
FIGUEIRÓ – Investir em educação, em atendimento à primeira infância, na aplicação das leis e em contenção.

ISTOÉ – E o que a psicologia diz sobre o corrupto?
FIGUEIRÓ – Há três tipos de comportamento. O primeiro é o grosseiro e despudorado. Esse se compraz em fazer demonstrações ostensivas de poder e riqueza. Necessita alardear o seu sucesso econômico mesmo quando os que estão à sua volta percebem que o dinheiro exibido não tem procedência legítima. O segundo é o fraudador discreto. Tem formas de agir que tornam mais difícil a descoberta do ilícito. O terceiro tipo é aquele que se sente traído na partilha e que denuncia o esquema.

ISTOÉ – Como funciona o cérebro de um corrupto?
FIGUEIRÓ– O corrupto funciona dentro do que a psicanálise chama de processos primários. Não há retardo na satisfação do desejo – tem de ser imediata. E não há negociação. O corrupto não transforma o que deseja em outra coisa. E, para conseguir, não importam os meios.

ISTOÉ – Essa satisfação é com algo material ou pode advir do prazer de cometer o ato?
FIGUEIRÓ – Há o prazer da transgressão. Mas o indivíduo com esse tipo de estrutura mental é menos simbólico. Volta-se mais para o concreto. O objetivo da corrupção é apropriar-se de bens materiais, mas há também o desejo de poder.

ISTOÉ – E as pequenas corrupções do dia-a-dia nas empresas, no escritório, no setor público?
FIGUEIRÓ – É o mesmo problema de personalidade e falta de contenção, em uma dimensão menor. Eles continuam se perpetuando por que a sociedade brasileira tem essa cultura permissiva. Outros países colocam freios com regras para serem de fato cumpridas por todas as pessoas, incluindo autoridades.



Fonte: Rev. IstoÉ, Cilene Pereira e Mônica Tarantino, 06/07/2005

O GRANDE INQUSIDOR

O GRANDE INQUSIDOR
por Fiodor Dostoievski

(Introdução contextual da obra)

Epísódio da obra “Os Irmãos Karamazovi”, mostra o encontro dos dois irmãos protagonistas do romance: Ivã e Aliocha. Este foi o último romance escrito por Dostoiévski, que levou três anos para terminá-lo, pondo nele tudo de sua inteligência e de seu coração, suas críticas, esperanças, aversões e predileções. Uma obra densa, tão cheia de paixão e de pensamentos, que a crítica mundial, reconheceu nela, a obra prima do grande romancista russo. O Problema angustiante e essencial da existência de Deus, que solicitou extremamente a alma de Dostoiévski nos último anos de sua vida, é neste romance ilustrado de maneira impressionante e terrível. Em termos da vivência humana, do decorrente problema: do bem e do mal, da liberdade de salvar-se ou condenar-se, do livre arbítrio e consequentemente da responsabilidade humana. O poder criador de Dostoiévski ressalta, neste romance, uma série de personagens de primeira grandeza que se debatem. Ivã é o intelectual frio, o teórico, o negador, mas que, por sua vez, sofre suas dúvidas até o desdobramento de sua personalidade, quando liberta de si o seu duplo, o seu demônio, que com ele discute suas virtudes, suas ideias, seus atos, e dele zomba e escarnece. Como Lutero, que atirou um tinteiro contra o diabo que o atormentava, Ivã Karamazovi atira contra o seu diabo uma xícara de chá. Aliocha, o irmão mais moço é o homem mais puro, o cristão ideal, sob certos aspectos, pairando pela sua bondade, pela sua virtude, acima dos homens animalizados, mas sem perder contudo a sua realidade, a sua participação na vida ambiente, a compreensão de seus semelhantes. Uma espécie de face do Cristo olhando os homem com a função de atraí-lo e, consequentemente, salvá-los do pântano onde se afogam.



O GRANDE INQUISIDOR
por Fiodor Dostoievski

(...) É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A acção passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante(1). Em França, os «clercs de la basoche»(2) e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espectáculos ingénuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu «bom Juízo». No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste género, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles «de que até Deus se esquece» - expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: «Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?» -, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: «Senhor, a Tua sentença é justa!». Pois bem: o meu poemazito teria sido deste género, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: «Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus», segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: «Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores».

É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. «Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas». A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: «Senhor, digna-Te aparecer-nos», já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev(3), que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que «curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda».
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A acção passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e «os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé». Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, «como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente». Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei(4). Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: «Senhor, cura-me e ver-Te-ei»; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
- Vai ressuscitar a tua filha - gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: «Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança - e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
- És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: - Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez - diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
- Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã - objectou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. - É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?
- Admite essa última hipótese - respondeu lvã, rindo - se o realismo moderno te tornou a esse ponto refractário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
- E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
- Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: «Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos.» Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. «Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?» - pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: «Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé». Não disseste Tu muitas vezes: «Quero tornar-vos livres»? Pois bem: lá os viste, aos homens «livres» - acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
- Não compreendo outra vez - interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma troça?
- De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objectivo de tornar os homens felizes. «Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
- Que significa isso: «Não Te faltaram avisos e conselhos»?
- Mas é o ponto capital do discurso do velho.
«O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada - continua ele - falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te «tentou». É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as «tentações» que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o facto de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: «Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.
«Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.
«Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: «Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?» Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. «Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!» Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: «Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram.» Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: «Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos.» Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo-nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade - indivíduos e colectividade - : «diante de quem se inclinar?» Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: «Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!» E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!
Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: «Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai.» Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: «Desce da cruz e acreditaremos em Ti.» Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exactamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objectivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra «Mistério!» Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: «Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!» Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão-de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-à tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.
Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo «impuro». Então eu me levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: «Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de «completar o número». Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi.»
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
- Mas... é absurdo! - exclamou, corando. - O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
- Espera, espera - disse-lhe rindo lvã. - Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
- Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu «não era precisamente a mesma coisa». Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
- Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase zangado. - Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
- Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, «esses seres de aborto, criados por troça». Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército «ávido do poder apenas para os vis bens», não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
- Talvez tu sejas também mação - disse de súbito Aliocha. - Não acreditas em Deus - continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. - Como acaba o teu poema? - prosseguiu ele, baixando os olhos. - Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: «O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: «Vai e nunca mais voltes... nunca mais.» E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
- E o velho?
- O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.

Notas:
1 Poeta Italiano, autor, entre outras obras, de Vita Nuova e d'A Divina Comédia, de que existe tradução portuguesa, viveu de 1265 e 1321.
2 Funcionários Judiciais.
3 Poeta russo, defensor da «santidade» da Rússia; viveu de 1803 a 1873.
4 Para maior glória de Deus.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

TRECHO DE UM DOS ÚLTIMOS SERMÕES DE MARTIN LUTHER KING JR.

Por Martin Luther King Jr. - Fevereiro de 1968.



Se você estiver por perto quando chegar o meu dia, eu não quero um longo funeral. Se você for pedir a alguém que faça algum elogio, diga-lhe para não falar muito. Eu quero expressar o desejo acerca daquilo que gostaria que fosse dito neste dia. Peça que não mencione que eu tenho um Prêmio Nobel da Paz, porque isso não é importante. Peça que não se mencione que eu recebi 300 ou 400 outros prêmios, porque isso não é importante. Peça que não se mencione onde estudei. Eu gostaria que se mencionasse nesse dia que Martin Luther King Jr. tentou dar a sua vida para servir aos outros. Eu gostaria que alguém dissesse naquele dia que Martin Luther King Jr. tentou amar os outros. Eu gostaria que se dissesse que eu tentei ser justo com a questão da guerra. Eu gostaria que alguém fosse capaz de dizer que eu tentei alimentar os famintos. Eu gostaria que alguém dissesse que em minha vida eu tentei vestir quem estava nu. Eu gostaria que alguém dissesse em meu dia que em minha vida tentei visitar aqueles que estavam presos. Eu gostaria que dissessem que eu tentei amar e servir a humanidade. Sim, se você for dizer alguma coisa, diga que eu tive um grande projeto. Diga que o meu projeto maior foi pela justiça. Diga que o meu desejo maior foi pela paz. Diga que o meu anseio maior foi a justiça. Tudo o demais foi apenas uma sombra disso. Eu não tenho dinheiro para deixar. Eu não tenho coisas caras e luxuosas para dar. Mas eu quero deixar uma vida compromissada. É isso que eu quero que se diga quando chegar o meu dia.


Disponível em: Religião, Utopia e Sociedade. Diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Ed. Aliança de Batistas do Brasil, 2009, p. 28,29.



http://belcorigenes.blogspot.com/2010/09/trecho-de-um-dos-ultimos-sermoes-de_23.html

Jesus Chorou (João 11:35)

Preparado por Daniel Borges em 11/10/2003



Sim, Jesus chorou diversas vezes. Cristo, em um de seus ensinamentos as famosas Bem-Aventuranças, declara: "Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados". (Mateus 5:4). A Bíblia nos mostra muitas passagens com Cristo em lágrimas, pelo povo, pela cidade, pelos homens, pela vida: (Hebreus 5:7; Mateus 23:37; Lucas 7:11-15), também pela morte (João 11:21; 33 e 35) que Ele veio para destruir e dar vida. "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão"? (I Coríntios 15:56). Por isso Ele ressuscitou e nos prometeu: "Declarou-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá; 26 e todo aquele que vive, e crê em mim, jamais morrerá. Crês isto"? (João 11:25-26).

Isaías profetizou a respeito de Jesus, ele sabia que seria um homem que passaria por muitas aflições e dores. "Era desprezado, e rejeitado dos homens; homem de dores, e experimentado nos sofrimentos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum". (Isaías 53:3). Mas, seria vencedor. "Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo". (João 16:33).

Mas Jesus chorou também por Ele mesmo. E Seu choro foi diferente das outras vezes, foi tão intenso que seu suor se transformou em gotas de sangue devido ao grande sofrimento (Lucas 22:44) pelo qual, Onisciente que é, sabia que teria que passar. "Porquanto vos digo que importa que se cumpra em mim isto que está escrito: E com os malfeitores foi contado. Pois o que me diz respeito tem seu cumprimento". (Lucas 22:27).

Vamos ler abaixo relato das dores de Jesus feita por um grande estudioso francês, o médico cirurgião Doutor Barbet dando a possibilidade de compreender realmente as dores de Jesus durante a sua paixão.

Sou um cirurgião, e dou aulas há algum tempo. Por treze anos vivi em companhia de cadáveres e durante a minha carreira estudei anatomia a fundo. Posso, portanto escrever sem presunção a respeito de uma morte como a de Jesus.

E, no Getsemani, "E posto em agonia, orava mais intensamente; e o seu suor tornou-se como grandes gotas de sangue, que caíam sobre o chão". (Lucas 22:44). Notem que o único evangelista que relata o fato é um médico, Lucas. E o faz com a precisão de um clínico.

O suar sangue, ou hematidrose é um fenômeno raríssimo. É produzido em condições excepcionais. Para provocá-lo é necessário uma fraqueza física, acompanhada de um abatimento moral violento causado por uma profunda emoção, por um grande medo. O terror, o susto, a angústia terrível de sentir-se carregando todos os pecados dos homens devem ter esmagado Jesus.
Tal tensão extrema produz o rompimento das finíssimas veias capilares que estão sob as glândulas sudoríparas, o sangue se mistura ao suor e se concentra sobre a pele, e então escorre por todo o corpo até a terra.

Conhecemos a farsa do processo preparado pelo Sinédrio hebraico, o envio de Jesus a Pilatos (Lucas 23:1) e o desempate entre o procurador romano e Herodes. Mesmo não vendo culpa em Cristo (João 19:4; Lucas 23:4, Lucas 23:14, Lucas 23:15 e Lucas 23:20) Pilatos cede, e então ordena a flagelação de Jesus. Os soldados despojam Jesus e o prendem pelo pulso a uma coluna do pátio. (Lucas 23:16; João 19:1).

A flagelação se efetua com tiras de couro múltiplas sobre as quais são fixadas bolinhas de chumbo e de pequenos ossos. Os carrascos devem ter sido dois, um de cada lado, e de diferente estatura. Golpeiam com chibatadas a pele, já alterada por milhões de microscópicas hemorragias do suor de sangue. A pele se dilacera e se rompe; o sangue espirra. A cada golpe Jesus reage em um sobressalto de dor. As forças se esvaem; um suor frio lhe impregna a fronte, a cabeça gira em uma vertigem de náusea, calafrios lhe correm ao longo das costas. Se não estivesse preso no alto pelos pulsos, cairia em uma poça de sangue.

Depois o escárnio da coroação. Com longos espinhos, mais duros que os de acácia, os algozes entrelaçam uma espécie de capacete e o aplicam sobre a cabeça. Os espinhos penetram no couro cabeludo fazendo-o sangrar (os cirurgiões sabem o quanto sangra o couro cabeludo). (João 19:3; Mateus 27:29). Pilatos, depois de ter mostrado aquele homem dilacerado à multidão feroz, o entrega para ser crucificado. (Lucas 23:24-25; João 19:16).

Colocam sobre os ombros de Jesus o grande braço horizontal da cruz; pesa uns cinqüenta quilos. A estaca vertical já está plantada sobre o Calvário. Jesus caminha com os pés descalços pelas ruas de terreno irregular, cheias de pedregulhos. Os soldados o puxam com as cordas. O percurso é de cerca de 600 metros. Jesus, fatigado, arrasta um pé após o outro, freqüentemente cai sobre os joelhos. E os ombros de Jesus estão cobertos de chagas. Quando ele cai por terra, a viga escapa-lhe, escorrega, e esfola-lhe o dorso. Sobre o Calvário tem início a crucificação.

Os carrascos despojam o condenado (João 19:23-24), mas a sua túnica está colada nas chagas e tirá-la produz dor atroz. Quem já tirou uma atadura de gaze de uma grande ferida percebe do que se trata. Cada fio de tecido adere à carne viva: ao levarem a túnica, dilaceram-se as terminações nervosas postas em descoberto pelas chagas. Os carrascos dão um puxão violento. Há um risco de toda aquela dor provocar uma síncope, mas ainda não é o fim. O sangue começa a escorrer.

Jesus é deitado de costas, as suas chagas incrustam-se de pedregulhos. Depositam-no sobre o braço horizontal da cruz. Os carrascos tomam as medidas. Com uma broca, é feito um furo na madeira para facilitar a penetração dos pregos. Os carrascos pegam um prego (longo, pontudo e quadrado), apóiam-no sobre o pulso de Jesus, com um golpe certeiro de martelo o plantam e o rebatem sobre a madeira. Jesus deve ter contraído o rosto assustadoramente. O nervo mediano foi lesado. Pode-se imaginar aquilo que Jesus deve ter provado; uma dor alucinante, agudíssima, que se difundiu pelos dedos, e espalhou-se pelos ombros, atingindo o cérebro. A dor mais insuportável que um homem pode provar, ou seja, aquela produzida pela lesão dos grandes troncos nervosos provoca uma síncope e faz perder a consciência. Em Jesus não. O nervo é destruído só em parte: a lesão do tronco nervoso permanece em contato com o prego: quando o corpo for suspenso na cruz, o nervo se esticará fortemente como uma corda de violino esticada sobre a cravelha. A cada solavanco, a cada movimento, vibrará despertando dores dilacerantes. Um suplício que durará três horas.

O carrasco e seu ajudante empunham a extremidade da trava; elevam Jesus, colocando-o primeiro sentado e depois em pé; conseqüentemente fazendo-o tombar para trás, O encostam na estaca vertical. Depois rapidamente encaixam o braço horizontal da cruz sobre a estaca vertical. Os ombros da vítima esfregam dolorosamente sobre a madeira áspera. As pontas cortantes da grande coroa de espinhos penetram o crânio. A cabeça de Jesus inclina-se para frente, uma vez que o diâmetro da coroa o impede de apoiar-se na madeira. Cada vez que o Mártir levanta a cabeça, recomeçam pontadas agudas de dor.

Pregam-lhe os pés. Ao meio-dia Jesus tem sede. Não bebeu desde a tarde anterior. Seu corpo é uma máscara de sangue. A boca está semi-aberta e o lábio inferior começa a pender. A garganta, seca, queima-lhe, mas ele não pode engolir. Tem sede. Um soldado estende-lhe sobre a ponta de uma vara uma esponja embebida com vinagre (bebida ácida), em uso entre os militares. Tudo aquilo é uma tortura atroz. “E logo um deles, correndo, tomou uma esponja, e embebeu-a em vinagre, e, pondo-a numa cana, dava-lhe de beber". (Mateus 27:48; Marcos 15:36); Lucas 23:36; João 19:28-29).

Um estranho fenômeno se produz no corpo de Jesus. Os músculos dos braços enrijecem-se em uma contração que vai se acentuando: os deltóides, os bíceps esticados e levantados, os dedos curvam-se. E como acontece a alguém ferido de tétano. A isto que os médicos chamam tetania, quando os sintomas se generalizam: os músculos do abdômen enrijecem-se em ondas imóveis. Em seguida, aqueles entre as costelas, os do pescoço, e os respiratórios. A respiração se faz pouco a pouco mais curta. O ar entra com um sibilo, mas não consegue mais sair. Jesus respira com o ápice dos pulmões. Tem sede de ar: como um asmático em plena crise, seu rosto pálido pouco a pouco se torna vermelho, depois se transforma num violeta purpúreo e enfim em cianótico.
Jesus é envolvido pela asfixia. Os pulmões cheios de ar não podem mais se esvaziar. A fronte está impregnada de suor, os olhos saem fora de órbita. Mas o que acontece? Lentamente com um esforço sobre-humano, Jesus toma um ponto de apoio sobre o prego dos pés. Esforça-se a pequenos golpes, se eleva aliviando a tração dos braços. Os músculos do tórax se distendem. A respiração torna-se mais ampla e profunda, os pulmões se esvaziam e o rosto recupera a palidez inicial.

Por que este esforço? Porque Jesus quer falar: "Jesus, porém, dizia: Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem...". (Lucas 23:34). Logo em seguida o corpo começa afrouxar-se de novo, e a asfixia recomeça. Foram transmitidas sete frases pronunciadas por ele na cruz: cada vez que quer falar, deverá elevar-se tendo como apoio o prego dos pés. Inimaginável! Atraídas pelo sangue que ainda escorre e pelo coagulado, enxames de moscas zunem ao redor do seu corpo, mas ele não pode enxotá-las. Pouco depois o céu escurece, o sol se esconde: de repente a temperatura diminui. Logo serão três da tarde, depois de uma tortura que dura três horas. (Lucas 23:44; Mateus 27:45; Marcos 15:33). Todas as suas dores, a sede, as cãibras, a asfixia, o latejar dos nervos medianos arrancam-lhe um lamento: "E, à hora nona, bradou Jesus em alta voz: Eloí, Eloí, lamá, sabactani? que, traduzido, é: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste"? (Marcos 15:34; Mateus 27:46). Jesus grita: Tudo está consumado! "Jesus, clamando com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isso, expirou. (Lucas 23:46).

Assim Ele morre em meu lugar... E no seu Eu já reconheci isto e você o que espera?



Disponível em:

http://www.dannybia.com/danny/msg/j/jesus_chorou_relato_cirurgiao.htm

LIBERDADE RELIGIOSA VERSUS LIBERDADE DE EXPRESSÃO: UM CONFLITO MERAMENTE APARENTE (Nova Versão)

Por Belcorígenes de Souza Sampaio Júnior


INTRODUÇÃO

A busca da liberdade (em sentido amplo) tem sido o âmago da questão dos movimentos históricos em prol da elevação do Ser Humano, sendo a autodeterminação o vértice dos movimentos sociais em prol dos chamados Direitos Humanos Fundamentais. A ânsia por se libertar da tirania e da opressão vicejou profundamente e com tal intensidade, que revoluções foram engendradas, países fundados, continentes conquistados e, infelizmente, milhões de vidas ceifadas. O estatuto das liberdades públicas, tal como hoje é concebido no âmbito das declarações de direitos humanos, foi solidificado com o sangue de milhões de mártires, vítimas da luta contra a dominação do corpo da alma e do espírito.

O termo LIBERDADE sendo um vocábulo análogo, pode significar a manifestação apenas de uma forma de liberdade, como a liberdade de locomoção, por exemplo, ou pode significar o conjunto das liberdades tuteladas pelos diversos estatutos de direitos humanos. De ordinário, esta última significação se faz presente quando o vocábulo é utilizado no plural: LIBERDADES. Podemos estabelecer então que em um sentido estrito a palavra LIBERDADE significa a expressão jurídica de alguma das formas de liberdade, e em sentido lato LIBERDADE significa um complexo instituto jurídico que possui como fundamentação a própria natureza humana.

Quanto à questão cognitivo-sociológica do ser humano, concordamos que as influências externas sobre o indivíduo modelam o seu material sensório e, com isto, podem ditar-lhe a conduta. Ser livre, neste contexto, significa apenas manobrar dentro do curto espaço das escolhas (e das possibilidades) limitadas. Mais isto não é pouco. É exatamente sobre o mundo das “escolhas”, das idéias e dos valores que nos restam que projetamos a nossa identidade cultural. É este o espaço que precisa estar a salvo da ação do Estado e da sua interferência.

É certo que não cabe ao Estado laico promover os valores da religião. Tal idéia libertária, oriunda da revolução francesa, procurou definir os espaços próprios da ação de cada poder: o poder político e o poder religioso. Tal contribuição propiciou o fortalecimento da liberdade religiosa, com a proliferação de religiões e seitas em um ambiente livre da perseguição e da prevalência de uma religião oficial.

Paralelamente, livre das guias da igreja e com o advento da evolução cientifica, industrial e tecnológica, um novo homo-saber anti-religioso forjou-se no seio da sociedade. Também a revolução dos costumes, na década de 60, e bem assim, os humores da globalização, informam este ser humano do novo milênio, desprovido dos valores religiosos que por séculos espelharam o mundo ocidental.

Não obstante, e talvez seja adequado dizer que agora no papel de “contracorrente”, os movimentos e grupos religiosos continuam a crescer. Os choques entre as duas cosmovisões são inevitáveis. São embates ideológicos, cabendo a cada grupo exercitar as suas liberdades de crença, convicção e expressão. A falta de uma visão equilibrada desta pluralidade ideológica, notadamente nos Estados com governos intitulados “progressistas”, tem sido fonte de problemas.

Alguns destes Estados constitucionais inclusive a Espanha e o Brasil, têm incorporado em suas políticas públicas determinados valores ideológicos visceralmente contrários aos valores religiosos Nestes casos é comum a alegação de que se está implantando o “laicismo” na sociedade”. Ora, isto é uma mera falácia. Nunca a idéia de um Estado laico significou o combate à religião alguma. Estado laico é apenas o Estado separado da Igreja no plano político.

Estes são tópicos que precisamos detalhar, pois para muitos operadores do direito as respostas ainda não estão claras, e o exame envolve responder a algumas perguntas, por exemplo: pode ser classificado como intolerante quem defende e afirma publicamente as suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas? Ou intolerante é quem não aceita que as suas convicções sejam publicamente contrariadas? Deve o Estado se imiscuir nestas questões? Existe um limite constitucional para estas ações?


1- LIBERDADES PÚBLICAS

Contrariamente ao que apregoa boa parte da doutrina, todas as liberdades podem ser consideradas como publicas tendo em vista que a intervenção do aparato estatal é sempre necessária, inclusive desde o ponto de vista legislativo, para a plena efetivação das liberdades.


As liberdades públicas operam, no âmbito jurídico, dentro de uma estrutura normativa legal. Trata-se de uma espécie de poder que o Estado confere aos indivíduos: poder de autodeterminação. A liberdade é um poder/dever que cada ser humano exerce sobre si mesmo, e trata-se de uma obrigação negativa, ao contrário da maioria dos outros direitos, ou seja, em seara da liberdade, o meu dever é apenas respeitar, pela abstenção, a liberdade dos outros.

Muitas questões ainda podem ser suscitadas nestes aspectos. É muito conhecida a noção de liberdade negativa e liberdade positiva, o que alguma confusão pode fazer.

ISAIAH BERLIN, afirma que a liberdade negativa significa não ser impedido pelos outros de fazer o que se deseja fazer : “YO SOY LIBRE EM LA MEDIDA EM QUE NINGÚN HOMBRE NI NINGÚN GRUPO DE HOMBRES INTERFIEREN EN MI ACTIVIDADE (...) YO NO SOY LIBRE EN LA MEDIDA EN QUE OTROS ME IMPIDEN HACER LO QUE YO PODRÍA HACER SI NO ME LO IMPEDIERAN” 1

Quanto à liberdade positiva preleciona: “EL SENTIDO ‘POSITIVO’ DE LA PALABRA ‘LIBERTAD’ SE DERIVA DEL DESEO POR PARTE DEL INDIVIDUO DE SER SU PRÓPRIO DUEÑO (...) QUIERO SER EL INSTRUMENTO DE MÍ MISMO Y NO DE LOS ACTOS DE VOLUNTAD DE OTROS HOMBRES”. 2



2 - LIBERDADES DA PESSOA INTELECTUAL E MORAL


Sabemos que pelos usuais critérios de classificação, são constituídas pelas chamadas liberdades de pensamento, também denominadas pelos progressistas como liberdades éticas, e abrangem os aspectos subjetivos da personalidade e da consciência humana que viabilizam a liberdade de eleição. Dentre elas podemos destacar: liberdade de opinião; liberdade de consciência liberdade religiosa; liberdade de crença; liberdade de culto; liberdade de expressão.


3 - A POSIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES.

De maneira geral, em todos os Estados Constitucionais e Democráticos de Direito as liberdades, atualmente, possuem um status constitucional de princípios fundamentais. Não é de outra maneira na Constituição de 1978 na Espanha e também na Constituição de 1988 no Brasil. Ambas refletem o teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da Organização das Nações Unidas, sendo desnecessário aqui, nesta breve reflexão, maiores delongas sobre esta citada condição já amplamente solidificada nas melhores doutrinas sobre o tema.


3.1 - A LIBERDADE RELIGIOSA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O lento maturar dos chamados direitos humanos perpassa toda a história da humanidade. Nestes cenários áridos da construção permanente da cultura das sociedades, a liberdade religiosa ocupa papel de reconhecida importância no atual Estado Democrático de Direito. A imanência da liberdade de pensamento permitiu aos indivíduos de diferentes culturas que se desenvolvessem no caminho da contemplação e/ou revelação religiosa. E cada coletividade definiu suas práticas, ritos, cortejos, ídolos e invocações. Por fim, servos, senhores, ricos, pobres, letrados e leigos se encontraram todos nos umbrais da elevação místico-religiosa.



3.2 - A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA.

A liberdade religiosa esta fincada entre as liberdades de pensamento. Enquanto direito fundamental, é a mais complexa das liberdades públicas, pois se volta para verdades imateriais de cunho transcendental, sendo intrinsecamente multi-facetária. Bem assim, carrega ontologicamente consigo as demais espécies ou formas de liberdade: a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de crença, a liberdade ideológica, a liberdade de opinião, a liberdade de expressão, a liberdade de reunião, dentre outras.

Assim, e correto afirmar que a liberdade religiosa, como pressuposto lógico e fundamental do seu exercício e da sua efetivação no Estado democrático de direito, abriga diversas outras liberdades, sem as quais seria mera simulação normativa. Neste sentido, não se pode conceber liberdade religiosa sem liberdade de manifestação do pensamento, ou liberdade religiosa sem liberdade de expressão. Tampouco liberdade religiosa sem liberdade de reunião. Como dissociar liberdade religiosa de liberdade de consciência? Como dissociar liberdade religiosa de liberdade ideológica? A obviedade de tais associações inviabiliza qualquer tentativa de cindi-las.


3.3 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA

Como afirmamos, a liberdade religiosa, como liberdade de pensamento que é, está umbilicalmente ligada à liberdade de expressão. Não parece ter fundamento a considerável confusão quanto a este ponto. Sem embargo de não existir um critério rígido de classificação das liberdades, é crível que as liberdades de pensamento, ou liberdades éticas, não encontram sua efetivação no momento em que surgem na tela sensorial da mente, pois este é um mero ato reflexo, mas sim no exato instante da sua exteriorização.

A Liberdade religiosa não indica apenas a simples possibilidade da existência de um pensamento encapsulado na mente do indivíduo, e afastado o imponderável evento de uma religião cuja máxima seja “só pensar por pensar”, o natural é que a exercício autêntico da religião, como o exercício de tantas outras coisas na vida, contenha e abranja discursos e ações.


4 - UM CONFLITO MERAMENTE APARENTE

O conflito aparente entre as duas formas de liberdade - Liberdade Religiosa e Liberdade de Expressão - se manifesta, aos olhos menos atentos, quando existe um conflito de opiniões entre duas doutrinas com visões antagônicas. Ao usar o seu direito à liberdade ideológico-religiosa, combinado com o seu direito a propalar a sinceridade dos seus pensamentos, consistente na liberdade de expressão (parte integrante da liberdade religiosa), algumas pessoas e grupos podem ser hostilizados com base na falsa premissa de que são intolerantes.

A título de exemplo, podemos imaginar o fiel de uma religião hipotética com as seguintes características doutrinárias:

a) Monoteísta: acredita somente na existência de um único Deus;
b) Transcendente: acredita que Deus está fora do plano material;
c) Salvadora: todos estão perdidos e precisam de salvação;
d) Universal: as verdades do que crêem são para todos os seres humanos;

A questão aqui é saber se, em essência, tal religião e seus seguidores são intolerantes quando defendem as suas convicções: a resposta claramente é negativa. Obviamente ao afirmar as verdades, que integram sua estrutura de consciência e de valores, o fiel desta religião hipotética estará negando as outras possibilidades. Isso, contudo, não autoriza ninguém a pensar que aqueles que são politeístas, ateus, etc., estariam sendo vítimas de intolerância ou discurso ódio de qualquer espécie tão só porque confrontados publicamente com as convicções do fiel desta religião hipotética. E aqui não se aplica a regra da vontade da maioria, nem da conservação de direitos de minorias, pois o que prepondera, neste caso, é o direito fundamental da liberdade de expressão religiosa e ideológica.

Assim, não se pode alegar que o fiel de uma fé religiosa, seja ela qual for, é intolerante porque sua doutrina religiosa não inclui a opção de aceitar como verdade a teoria oposta. Tal situação tocaria o absurdo e seria um equívoco cometido contra a lógica e contra o fato mesmo da irredutibilidade de opiniões.


5- LIBERDADE RELIGIOSA COMO TOLERÂNCIA À OPINIÃO DIVERSA

Tolerância pode ser definida como a aptidão para a convivência de crenças e opiniões diversas. A idéia de tolerância tem seu campo de ação mais importante no campo religioso e, automaticamente, da liberdade de consciência. Podemos nos referir a dois tipos básicos de tolerância: tolerância frente a crenças e opiniões religiosas e políticas diversas; e a tolerância frente às minorias étnicas, raciais, físicas, homossexuais etc.

Isto nos situa frente às livres e legítimas manifestações do pensamento dentro de um Estado Constitucional de Direito. Tais divergências derivam da liberdade de pensamento, exteriorizadas na convicção de possuir a verdade, seja ela política, ideológica ou religiosa.

O que importa aqui é fixar como podem ser compatíveis, teórica e praticamente, duas “verdades”, ou convicções, opostas. A resposta é que, sob pena de se cair no vazio inaceitável de se tentar impor limitações ao livre exercício do pensamento e na tirania de combater o direito de livre manifestação do mesmo, só resta aceitar com tranqüilidade o fato de cada ser humano tem o direito de pensar, crer e se expressar livremente, conforme a sua convicção e consciência.

A liberdade religiosa pressupõe então o direito de crer e o direito de afirmar publicamente aquilo que se crê, mesmo que esta cosmovisão contrarie a opinião, a ideologia ou até mesmo a religião alheia. Em outras palavras, o direito à liberdade religiosa, e ideológica, garante a possibilidade de se crer no que quer que seja, e de afirmar publicamente aquilo que em que se crê.

A liberdade religiosa só existe de fato quando se assegura este seu aspecto externo e público. Porque a religião num contexto internalizado, em forma de pura reflexão, não necessita de qualquer tipo de garantia do Estado. Em mero pensamento sempre há liberdade. Por este motivo, o que a garantia de liberdade religiosa pretende assegurar é a possibilidade de o fiel viver e dizer, com liberdade, de acordo com o que acredita.

Acrescente-se que, por ser direito fundamental, a liberdade religiosa não deve ceder a princípios menores. Aqui não tem aplicação um princípio de “boa vizinhança ideológica”. Nem é aceitável qualquer imposição para que o indivíduo deixe pensar o que pensa, com o fito de tornar sua crença mais “aceitável” ou diminuir eventuais contrastes de opiniões, pois isto equivaleria a negar a sua liberdade e empobrecer o debate ideológico.


5.1 - A LIBERDADE FRENTE À CONFRONTAÇÃO E A PROVOCAÇÃO IDEOLÓGICA

Alguns autores entendem que em um Estado democrático é possível contestar, frontal e severamente, qualquer ideologia, inclusive a religiosa, tudo perfeitamente embarcado pela liberdade de expressão. Tal posição é legítima, porém precisa ser mais bem discutida para não se descambe para a mera afronta e violência gratuita. Geralmente seus defensores se dizem representantes de algum tipo de progressismo, secularismo, ou laicismo:


“(...) PUES BIEN, LAS IDEOLOGÍAS, LOS SISTEMAS DE CONVICCIONES Y DE CREENCIAS, RELIGIOSOS O NO RELIGIOSOS, NO MERECEN EL MÁS MÍNIMO RESPETO. DESDE LAS CONQUISTAS DE LA LIBERTAD DE CONCIENCIA, DE PENSAMIENTO, DE EXPRESIÓN, EL DESTINO MÁS DIGNO DE CUALQUIER SISTEMA DE IDEAS Y CREENCIAS ES SER SOMETIDO A TODAS LAS OPERACIONES DE PENSAMIENTO QUE SEAMOS CAPACES DE REALIZAR CON ÉL, DESDE SU EXALTACIÓN A LA MÁS COMPLETA BURLA, AL ESCARNIO Y A LA IRREVERENCIA...” 3


Ou em outra reveladora versão:


“(...) PESSOAS MERECEM RESPEITO. IDÉIAS NÃO. (...) COMO O LEITOR JÁ DEVE TER CONCLUÍDO, FAÇO OBJEÇÕES FORTES A TESES RELIGIOSAS, MAS ELAS NÃO SE CONFUNDEM COM ATAQUES A PESSOAS RELIGIOSAS. (...) FAÇAM SUAS ESCOLHAS. SÓ O QUE NÃO VALE É TENTAR CALAR O ADVERSÁRIO.” 4


Entendemos aceitáveis estes “ataques”. Enquanto os mesmos permanecerem no plano da contestação ideológica de uma determinada convicção política ou crença religiosa, é viável concordar que tal postura estará ancorada pelo direito à liberdade de expressão. Sem embargo, quando o discurso atacar a integridade moral ou pessoal de qualquer indivíduo (ou instituição), desqualificando-o pelo fato da sua ideologia, estaremos incorrendo em uma postura discriminatória e odiosa, a merecer rechaço.

Acredito que o melhor exemplo sobre o assunto seja o constante “patrulhamento pejorativo” que os “crentes” recebem neste atual ambiente mundano secularizado, e que se diz “evoluído”. Ora, evoluir é perceber a inexorável amplitude da condição humana e encarar como normal as divergentes opções e identidades culturais (pacíficas) eleitas para si por cada indivíduo livre, e não o seu contrário. Julgar o seguidor de determinada doutrina como inferior (intelectual ou moralmente) é incidir na infamante e antijurídica prepotência de acreditar-se signatário das melhores escolhas e de maiores direitos, o que por si só é abjeto.

Neste ambiente, é necessário também que se esclareça disparatado querer emparedar a liberdade religiosa proibindo a divulgação de suas idéias ou a prática de seus cultos. O raciocínio é o mesmo quanto à idéia de querer obrigar a adesão a um culto ou ideologia qualquer. Dizendo de outra forma, a liberdade religiosa não existe só para assegurar a prática religiosa, mas também para respaldar a possibilidade de o sujeito não ter religião. Ela afiança a possibilidade de um ateu dizer, publicamente, que não acredita na existência de Deus, ou duvidar que Ele seja bom, etc, sem que por isso seja considerado intolerante.

Se for verdade que a liberdade de expressão religiosa ou ideológica não constituem um direito absoluto, também é verdade que estas só devem encontrar limites em casos muitos específicos (como as questões que envolvem, por exemplo, segredos militares).

Por outro lado, devemos concordar que a garantia da liberdade de expressão apesar de criar um direito a “dizer o que pensa”, não abriga um “direito a ser ouvido” nem a uma “obrigação de ouvir”. Uma postura que pretenda instituir a “obrigação de ouvir”, não seria compatível com um Estado de direito. Uma normatização deste quilate só poderia ser bosquejada em Estados totalitários (talvez o exemplo mais inconfundível seja o do eterno comandante Fidel Castro, em Cuba), mas, fora isso, ninguém pode ser obrigado, nem pelo Estado nem por particulares, a ‘ouvir’ ou deixar de ouvir, seguir ou deixar de seguir doutrina alguma.



6- LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A IGUALDADE

Há quem argumente que certas manifestações da liberdade de expressão podem ferir o princípio da igualdade. Entendem que a divulgação de algumas opiniões específicas podem vulnerar grupos menos privilegiados e contribuir para o aumento da desigualdade. Esta corrente fomenta a idéia de que algumas pessoas não devem ser livres para expressar as suas opiniões e preferências.

Equivocadamente, se toma como parâmetro para esta “censura” algumas normas a respeito de assédio sexual e discriminação no ambiente de estudo ou de trabalho. Mas é fácil ver que não trata da mesma coisa. O assédio sexual e a discriminação negativa são condutas que efetivamente merecem reprovação. Mas este pensamento legítimo nunca pode estribar a falsa idéia de que necessário desinfetar o mundo para criar um espaço asséptico para abrigar “grupos minoritários que se julgam alvo de manifestações e expressões que ‘reputam’ ofensivas”.

Tal situação seria um retorno a um tempo das “trevas” da ignorância jurídico-política. Na prática, pressupõe a criação de uma espécie de “POLÍCIA IDEOLÓGICA” e, quem sabe, de uma “CENSURA PRÉVIA” em textos e falas. Neste diapasão, seria necessário e conveniente, quem sabe, estabelecer também “TRIBUNAIS CULTURAIS” para julgar as demandas apresentadas pelos “FISCAIS CULTURAIS”, o que, verdadeiramente, é um insondável absurdo.

“O ESTADO PODERIA ENTÃO PROIBIR A EXPRESSÃO VÍVIDA, VISCERAL OU EMOTIVA DE QUALQUER OPINIÃO OU CONVICÇÃO QUE TIVESSE UMA POSSIBILIDADE RAZOÁVEL DE OFENDER UM GRUPO MENOS PRIVILEGIADO. PODERIA POR NA ILEGALIDADE A APRESENTAÇÃO DA PEÇA O MERCADOR DE VENEZA, OS FILMES SOBRE MULHERES QUE TRABALHAM FORA E NÃO CUIDAM DIREITO DOS FILHOS E AS CARICATURAS OU PARÓDIAS DE HOMOSSEXUAIS NOS SHOWS DE COMEDIANTES. OS TRIBUNAIS TERIAM DE PESAR O VALOR DESSAS FORMAS DE EXPRESSÃO, ENQUANTO CONTRIBUIÇÕES CULTURAIS OU POLÍTICAS, CONTRA OS DANOS QUE PODERIAM CAUSAR AO STATUS OU À SENSIBILIDADE DOS GRUPOS ATINGIDOS.” 5


É preciso sempre muita atenção para não caiamos no erro de acreditar que os institutos da liberdade e da igualdade estão em lados opostos. Na verdade, ambos se complementam na luta pela efetivação dos direitos fundamentais da humanidade. Não existe o tal propalado conflito entre a liberdade e a igualdade, e mesmo se existisse teríamos que fazer a opção pela liberdade, pois o entendimento contrário nos levaria a justificar a existência de um Estado controlador, o que seria uma grave agressão à própria noção de direitos fundamentais, que são exatamente aqueles direitos que os particulares exercem contra o Estado e contra terceiros, e que pertencem à órbita de ação do indivíduo, dentro da eficácia vertical e horizontal dos mesmos.

O ambiente social e político de uma sociedade é plural. E exatamente esta riqueza, ou “mercado de idéias”, que faz prosperar as diferenças, e não seu contrário. O direito à diferença e o direito á manifestação está intimamente ligada à própria noção de igualdade, cidadania e representação.



7- LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIVERSIDADE

Uma sociedade ideologicamente plural deve admitir a existência de diversas manifestações divergentes na sociedade. Quando um Estado que se diz democrático resolve intervir indevidamente no processo natural de harmonização das diferenças, surge sempre um problema. É que não compete ao Estado selecionar quais manifestações e valores poderão prosperar e quais não. A complexidade do corpo social exige distanciamento do Estado das ideologias particulares dos seus cidadãos, concretizando assim os ideais de liberdade.


Uma coisa é o direito à manifestação ou expressão do pensamento, e outra bem diferente é supor que alguém, ou algum grupo tenha o direito de impor a sua visão, ou os seus valores, à sociedade, sob a tutela do Estado. Assim como não existe um direito geral a “aceitação” das idéias, não existirá obviamente um direito a “imposição” de uma idéia ou valor qualquer. As idéias devem se confrontar no plano das idéias e não na trincheira do direito ou na ameaça da sanção oficial por parte de um Estado que se pretenda minimamente democrático.


Podemos exemplificar esta questão com a seguinte hipótese: um determinado Estado resolve proibir, através de uma sanção penal ou civil, que a doutrina “A” (religiosa, moral ou política) seja defendida ou professada, pelo motivo desta entrar em confronto direto com os postulados da doutrina “B”. Se agir assim, este Estado comete dois erros:

-1º Viola o direito a liberdade religiosa, ideológica ou liberdade de expressão das pessoas que se filiam à doutrina “A”;

-2º Sendo laico e democrático, se desnatura ao promover e afirmar oficialmente a doutrina “B”.



8- LIBERDADE DE EXPRESSÃO, IDENTIDADE E CONFORMAÇÃO

A identidade do indivíduo é inferida sempre a partir de critérios de semelhança e comparação. Geralmente é definida como a expressão da sua semelhança com algo que seja emblemático enquanto paradigma. Ou seja, para falarmos em identidade do indivíduo precisamos saber as características singulares do mesmo para então comparar com os demais modelos existentes e estabelecer as diferenciações e semelhanças, que definem quem ele é, e porque ele é o que é. O mesmo vale para os diversos grupos sociais.

Assim, é possível conceber a liberdade de expressão como manifestação da personalidade e, portanto, componente mesmo da identidade individual.

O segundo sentido da palavra reconhecimento, que é o de identificação, serve para dizer que alguém foi “reconhecido em meio a uma multidão”, ou seja, foi identificado. E na política de reconhecimento deve ser entendido como a atitude de particularizar um indivíduo, percebendo-o em sua singularidade. Avulta a idéia de que cada indivíduo é diferenciado, e o mérito de ser diferenciado é o valor inerente da autenticidade.

Desta maneira, há que se pensar a liberdade de expressão como garantia de que o indivíduo seja reconhecido por seus méritos (valorização) e por sua diferença (identificação). E a identificação, como vertente da política de reconhecimento, se inclina para personalidade do indivíduo, e não apenas para a sua pessoa. Não se reconhece (identifica) o sujeito por ser quem é (sua identidade pessoal), mas por ser como é (sua personalidade). É como quando se diz, ao observar uma pintura ou ler um livro, que, devido às suas peculiaridades, é possível reconhecer (identificar) o seu autor.

Um outro aspecto da questão é a moderna compreensão de que cada ser humano tem a sua própria expressão de personalidade única e inigualável. Isto amplia a noção de identidade enquanto grupo religioso, ou social. Dizendo de outra forma. No caso da questão religiosa, por exemplo, duas pessoas não crêem sempre da mesma maneira ou na mesma intensidade e isto vai decorrer que a expressão de fé de cada uma vai ser sempre diferente. Tal dimensão também deve ser contemplada pelas liberdades, de uma maneira geral.

A aplicação prática deste pensamento pode ser visualizada com relação à idéia de identidade religiosa. Ou, em palavras melhores, da ligação do indivíduo com a idéia da existência ou não da divindade e todos os consectários desta relação.

Por muitos motivos, o modo através da qual o indivíduo se porta frente ao sagrado, é algo que não se pode ou consegue afastar da personalidade. É um dos fundamentos da personalidade. Neste compasso, é necessário que a política de reconhecimento caminhe de mãos dadas com a liberdade de expressão, garantindo ao fiel, no exercício de sua crença, afirmar e viver de acordo com o seu credo, constitutivo que é da sua própria identidade e decorrente da sua autonomia e dignidade.

Sabendo que todo ser humano, independentemente de ser diferente, ou não, do seu ambiente social, tem os mesmos direitos que os demais, implica concluir que para o universo jurídico tais diferenças ideológicas devem ser insignificantes. Assim, se o fiel de uma fé religiosa qualquer se veste de maneira atípica com os padrões seculares da moda e sofre opressão ou discriminação social por causa disto, estará sofrendo um verdadeiro atentado à sua liberdade cultural e religiosa, que lhe garante o direito de ser e se expressar de acordo com as suas convicções.


“PODEMOS HABLAR DE UNA IDENTIDAD INDIVIDUALIZADA, QUE ES PARTICULARMENTE MIA, Y QUE YO DESCUBRO EM MI MISMO. ESTE CONCEPTO SURGE JUNTO CON EL IDEAL DE SER FIEL A MI MISMO YA MI PARTICULAR MODO DE SER(...) HAY CIERTO MODO DE SER HUMANO QUE ES MI MODO. HE SIDO LLAMADO A VIVIR, MI VIDA DE ESTA MANERA, Y NO PARA IMITAR LA VIDA DE NINGÚN OUTRO (...) SI NO ME SOY FIEL, ESTOY DESVIÁNDOME DE MI VIDA, ESTOY PERDIENDO DE VISTA LO QUE ES PARA MI EL SER HUMANO(...) LA IMPORTANCIA DE ESTE CONTACTO PRÓPRIO AUMENTE CONSIDERABLEMENTE QUANDO SE INTRODUCE EL PRINCIPIO DE ORIGINALIDAD: CADA UMA DE NUESTRAS VOCÊS TIENE ALGO ÚNICO QUE DECIR(...) SER FIEL A MÍ MISMO SIGNIFICA SER FIEL A MI PROPRIA ORIGINALIDADE, QUE ES ALGO QUE SÓLO YO PUEDO ARTICULAR E DESCUBRIR” 6

De toda forma, uma coisa é um grupo tentar impedir POR MEIOS NÃO DEMOCRÁTICOS a legalização de uma prática qualquer. Isto caracterizaria uma violação, não apenas da dignidade humana, mais do próprio Estado democrático. Outra coisa bem diferente é este grupo, DENTRO DO PRÓPRIO JOGO DEMOCRÁTICO, onde todos podem expressar as suas convicções e trabalhar por elas, realizar o combate ideológico ou a defesa das suas convicções e valores.

Este exercício de democracia não pode ser tomado como atentatório da dignidade humana. Atentatório seria tentar emudecer a expressão daqueles que quiserem exercer este legítimo direito. Sob esta ótica não se pode negar que ser partidário da “dignidade humana”, muitas vezes significa somente uma questão de ponto de vista, dentro do espaço da livre reflexão autonômica dos indivíduos que estejam em lados opostos, em um debate ideológico.


9 - ESTADO LAICO E LIBERDADE RELIGIOSA

A expressão estada laico é deveras paradoxal, pois ela indica que a religião não ocupa um patamar especial na sociedade, o que por si só já é discriminatório porque pressupõe um Estado separado apenas dos valores éticos da religião. Se todas as liberdades da pessoa intelectual e moral, inclusive a liberdade religiosa, são liberdades éticas, promover ou rechaçar apenas uma delas é uma forma clara de discriminação. Não faz sentido que o Estado deva ficar desmamado apenas dos valores da religião.

É preciso cuidar para que o discurso de igualdade das chamadas “liberdades éticas” não se converta em discriminação da liberdade religiosa. Seria um total paradoxo entender que as liberdades éticas são iguais em importância mais que o Estado só deve estar separado dos valores da religião. É este o absurdo jurídico que propõe alguns chamados “juristas progressistas?” Prefiro acreditar que não.

Assim, a liberdade sexual, a liberdade de matrimônio, a liberdade de procriação e a liberdade religiosa são apenas uns feixes da liberdade ética e um Estado Democrático de Direito deve se manter distanciado da promoção de qualquer uma delas. A expressão Estado Laico deve, portanto, ter o alcance hermenêutico de Estado Neutro.


9.1 - O LAICISMO COMO A “NOVA RELIGIÃO” DO ESTADO

“O ESTADO LEIGO, QUANDO CORRETAMENTE PERCEBIDO, NÃO PROFESSA, POIS, UMA IDEOLOGIA "LAICISTA", SE COM ISTO ENTENDEMOS UMA IDEOLOGIA IRRELIGIOSA OU ANTI-RELIGIOSA(...) ENFIM, VISTO QUE NÃO DEFENDE SOMENTE A SEPARAÇÃO POLÍTICA E JURÍDICA ENTRE ESTADO E IGREJA, MAS TAMBÉM OS DIREITOS INDIVIDUAIS DE LIBERDADE EM RELAÇÃO A AMBOS, O LAICISMO SE REVELA INCOMPATÍVEL COM TODO E QUALQUER REGIME QUE PRETENDA IMPOR AOS CIDADÃOS, NÃO APENAS UMA RELIGIÃO DE ESTADO, MAS TAMBÉM UMA IRRELIGIÃO DE ESTADO.” 7


O papel do Estado laico não é promover uma liberdade ética em detrimento de outra. Por certo, partindo do correto pressuposto de que todas elas estão em um mesmo patamar jurídico não deve promover liberdade ética alguma. A correta atitude por parte do Estado em relação às liberdades éticas em geral é garantir seu livre exercício, sem apontar caminhos ou legislar para demonstrar predileções. Como a bem resume a famosa frase de NORBERTO BOBBIO: “EL LAICISMO QUE NECESITE ARMARSE Y ORGANIZARSE CORRE EL RIESGO DE CONVERTIRSE EN UNA IGLESIA ENFRENTADA A LAS DEMÁS IGLESIAS”.

Um Estado Constitucional de direito não pode eleger objetivos que se sobreponham aos direitos fundamentais de seus cidadãos. Não pode, por exemplo, por em prática uma política de “suavização” da fé religiosa, visando torná-la menos categórica, seja qual for a religião ou doutrina. No Estado de Direito todos estão legitimamente autorizados a ter e a afirmar as suas legítimas convicções. Qualquer tentativa de boicotar este exercício é um verdadeiro atentado aos direitos humanos fundamentais.

É urgente resgatar, no plano de nossa ação prática, a universalmente conhecida máxima de Voltaire: "SOU CONTRA TUDO O QUE VOSSA SENHORIA DISSE, MAS DEFENDEREI ATÉ A MORTE O SEU DIREITO DE DIZÊ-LO".



CONCLUSÃO


Defender a liberdade é mais do que necessário é libertador, pois historicamente o entorno desta luta tem removido montanhas de opressão, preconceitos e discriminação.

Temos que ter em mente que o seguidor de determinada doutrina particular ou um fiel religioso possuem uma postura diferenciada com relação aos fatos e eventos da vida, o que para a racionalidade leiga pode não fazer qualquer sentido, sendo normal tal conflito. São dilemas de lógicas e ordens diferentes.

A liberdade religiosa, por exemplo, flui da nossa própria condição de seres humanos, e cabe ao Estado garanti-la e jamais violá-la. A despeito disso, não raro surgem pseudo-políticas que avançam sobre estes direitos basilares. A ingerência dos poderes públicos no âmbito da fé dos indivíduos tem adquirido, no Brasil e na Espanha, status de nova fé pública. Vivemos, ultimamente, em verdadeiros Estados “LAICIZISTAS”, entendendo-se esta expressão como denotadora da manifestação de uma doutrina de aniquilação dos valores da religião e a introdução e afirmação de uma sociedade “livre” da influência da fé religiosa.

O Estado, e os seus representantes, estribados quase sempre em falsas premissas, não podem tentar blindar, proibir ou privilegiar, ideologia, religião, raça ou cultura alguma contra o confronto e o embate salutar das idéias.

Neste contexto é viável afirmar que uma coisa é a prática do crime de racismo, que é abjeto e inaceitável, outra coisa bem diferente é vincular a crítica à religião africana, por exemplo, como crítica à raça. A crítica à ideologia e à religião qualquer é lícita. Tem como campo de atuação o âmbito das liberdades de pensamento e da livre circulação das idéias. Diferentemente, a crítica à raça pressupõe um juízo de valor depreciativo ao indivíduo, e isto, corretamente, não deve ser tolerado. O que não se pode aceitar é que o Estado tente confundir as duas situações e com isto se imiscuir e interferir no âmbito das liberdades constitucionais.

Por outro lado, assim como não se pode afirmar que a crítica a religião, ao Estado, ao capitalismo ou ao comunismo seja discriminatória ou demonstre intolerância, sendo apenas um mero exercício da liberdade de pensamento e de expressão, o mesmo raciocínio deve ser legitimamente aplicado, por exemplo, com relação à crítica a ideologia homossexual, ou ao sacrifício ritual de animais, ou à pratica do aborto e da eutanásia, ou a entrega do dízimo,etc, todas estas bandeiras de algumas religiões ou de críticos independentes. Tais críticas são jurídico e filosoficamente legítimas e pensar diferente é, no mínimo, um retrocesso.

Mais infundada ainda é a afirmação de que a eventual crítica à religião de uma minoria é uma forma de discriminação. Ora tal situação no plano das idéias é inconcebível. A tese que a alimenta parte do pressuposto de que algumas pessoas podem sofrer críticas à sua religião e outras pessoas não. Este é um raciocínio hediondo. Outra alegação espúria se refere a um pretenso direito das minorias a ter a sua opção promovida pelo Estado. Tal direito não existe. E é exatamente esta a real medida do pluralismo e da idéia de um Estado democrático.

Vale salientar que o âmbito do que seja a discriminação, inclusive racial, precisa ser urgentemente esclarecido. Ultimamente este termo tem sido levianamente sacado para acusar a qualquer pessoa que se recuse a aceitar a cartilha estatal, e da ONU, para a modelagem das novas convicções ideológicas e religiosas contidas na cartilha da propalada “Nova Era”.

As manifestações de ódio e intolerância com relação à diversidade religiosa precisam ser percebidas. Muitas delas são alavancadas por leis flagrantemente inconstitucionais, que anacronicamente dizem pretender eliminar justamente as práticas que acabam consagrando, como atual efusão de leis “anti-discriminação e homofobia” que se prepara no Brasil, ou como os problemas relacionados ao projeto da EPC na Espanha.

É imperativo manter uma postura crítica diante de práticas nitidamente antidemocráticas. Não se pode recorrer à infamante idéia de calar a afirmação doutrinária de um indivíduo ou de uma doutrina ou de uma religião, usando uma interpretação ilegítima da lei, ou mesmo uma “lei espúria” e inconstitucional como ameaça. Devemos estar abertos à crítica e dispostos a compreender a inevitabilidade da divergência.

A tolerância não avança quando a liberdade religiosa e a liberdade de expressão são cerceadas. A tolerância se estabelece no seio social exatamente quando somos livres para divergir e afirmar e defender as nossas próprias convicções e identidade cultural.

Os juizes não devem ser influenciados por nenhuma espécie de ativismo ideológico, cultural ou racial, orquestrado por uma política de laicismo (laicizismo) que incentiva o ódio à afirmação da identidade religiosa para com isto afligir determinadas pessoas e religiões, negando-lhes a liberdade de consciência. Ao contrário, o debate ideológico deve ser incentivado e protegido pelo Estado.

Por fim, há que se reafirmar que no moderno Estado de Direito a proteção constitucional às liberdades inclui na sua esfera de tutela o direito à escolha livre de uma religião ou fé. Bem como o direito de viver de acordo com esta fé. Este é um postulado inexorável dentro do universo jurídico.

A liberdade religiosa é uma derivação natural da liberdade de pensamento. E a liberdade de expressão é seu pressuposto lógico. Sua garantia compõe a base filosófica e jurídica de todo e qualquer Estado democrático. Qualquer restrição indevida ao exercício da liberdade religiosa se configura, em última análise, como uma restrição ao livre exercício do pensamento e como um atentado aos direitos fundamentais.

Pretender simplificar as diferentes crenças a um mínimo comum, sob o argumento da construção de uma paz ideal através da identidade de uma única fé, é em uma abstração utópica. Reduz indevidamente a pluralidade, riqueza e diversidade do pensamento humano Tal devaneio deve ser combatido pela garantia da proteção estatal à manifestação da diversidade religiosa.

Precisamos nos conscientizar da necessidade de cultivarmos uma cultura menos beligerante no tocante aos assuntos da fé e da laicidade. Temos que aprender a divergir e a convergir, com dignidade e com o respeito mútuo que deve caracterizar qualquer debate razoavelmente civilizado Só assim construiremos uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e mais humana. A opção oposta equivalerá ao “atirar a primeira pedra.”

Por fim, como afirmamos em recente reflexão, intitulada LIBERDADE RELIGIOSA OU ESCRAVIDÃO, Em um Estado Constitucional de Direito, NINGUÉM pode ser obrigado a pautar a sua existência pessoal na fé religiosa ou na crença em doutrina religiosa qualquer. Porém, dentro desta mesma ordem democrática, TODOS estão indelevelmente obrigados a respeitar aqueles que, LIVREMENTE, assim o fazem. Eis ai, em resumo, a essência do que se convencionou chamar de LIBERDADE RELIGIOSA.

Assim, toda espécie de conduta que sugira a batuta de um patrulhamento ideológico/religioso é ilegal, imoral e perversa. Ilegal por ferir gravemente o ordenamento constitucional e os princípios internacionais de direito. Imoral por lançar na indecente lixeira do desrespeito todas as conquistas libertárias durante conquistadas, principalmente, no mundo ocidental. Perversa por constranger, oprimir e infligir desconforto ao crente, ao fiel, ao CIDADÃO que no livre exercício do seu pensamento e da sua consciência, altar maior da liberdade, evocou para si a identidade religiosa na qual se insere no mundo.

Este ser humano que ousou exercer o seu justo direito de viver em conformidade e harmonia com o que pensa e sente não pode, em razão da sua escolha, ser vilipendiado, discriminado, humilhado, preterido e desprestigiado.

Pensar diferente é autorizar o arbítrio sobre terceiros em sede de consciência e ideologia, é permitir a ronda autoritária nas categorias mais profundas da mente humana, é convenir com o patrulhamento ressentido, colérico e antijurídico dos que se sentem acima do BEM e do MAL. É coadunar com as acusações levianas, feitas aos diferentes, de estarem, estes, “aborrecidamente” exercendo o seu jus credere et habere fidem, quando em verdade, a VERDADE mesma, como sabemos, é sempre uma incógnita.

Liberdade para crer ou escravidão ideológico-laicista? Não se trata aqui de uma simples questão de bom senso e sim de uma visão de futuro e cultura que queremos ter e cultivar. Diferente do confronto dialético salutar e respeitoso entre culturas opostas, que deve ser perfeitamente permitido, o assédio ao livre exercício da convicção individual, seja ela religiosa ideológica ou moral, ergue-se à categoria de atentado ao próprio conceito de HUMANIDADE.


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1 - BERLIN, Isaiah. Dos conceptos de liberdad. Universidad de Chile: www.cfg.uchile.cl, p. 3

2 - BERLIN, Isaiah. Dos conceptos de liberdad. Universidad de Chile: www.cfg.uchile.cl, p. 7

3 – FRANCISCO, juan. laicismo y democracia versus tolerancia y respeto . em http://www.audinex.es/~dariogon/g021.htm - em 31 de julio de 2004.

4 - SCHWARTSMAN, Hélio. Delírios divinos. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u356210.shtml
Em 29 de setembro de 2008.

5 - DWORKIN, Ronald. O direito da Liberdade : a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. M. Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
p. 377-378.

6 - TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la la” política del reconocimiento”. México, D.F: Fondo de Cultura Econômica, 1993. p. 22,24,25.

7- BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de poliítica.



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