sábado, 26 de fevereiro de 2011

REEDITANDO O FILME DO INCONSCIENTE

Por Augusto Cury


(...) A personalidade dos discípulos evidencia o desafio que Jesus enfrentaria. O único que se encaixava num padrão aceitável de comportamento era Judas, o que o vendeu e o traiu. Não havia modelos. Parece que Jesus errou drasticamente em sua escolha. Ele tinha de revolucionar a personalidade deles para que eles revolucionassem o mundo.

Seria a maior revolução de todos os tempos. Mas essa revolução não poderia ser feita com o uso de armas, força, chantagem, pressões, mas com perdão, inclusão, mansidão, tolerância. Seus discípulos não conheciam essa linguagem. Parecia loucura o projeto de Jesus. Era quase impossível atuar nos bastidores da mente dos discípulos e transformar as matrizes conscientes e inconscientes da memória e tecer novas características de personalidade neles.

Quando alguém nos ofende ou contraria, detona-se o gatilho da memória que em milésimos de segundos abre algumas janelas do inconsciente: as janelas da agressividade, do ódio, do medo. A área do tamanho da cabeça de um alfinete contém milhares de janelas com milhões de informações no córtex cerebral.

Não sabemos localizar as janelas da memória, nem as positivas nem as negativas. Mesmo se soubéssemos o seu lócus, não poderíamos deletá-las ou apagá-las. Deletar informações é a tarefa mais fácil nos computadores. No homem, é impossível. Todas as misérias, conflitos e traumas que temos arquivados não podem mais ser apagados. A única possibilidade é reeditá-los ou reescrevê-los. Sem reeditá-los é impossível transformar a personalidade. Podemos ficar anos fazendo tratamento psicoterapêutico que não haverá mudanças substanciais. Como reeditar a memória dos discípulos em tão pouco tempo? Jesus tinha pouco mais de três anos para isso.

Se fosse possível transportar os mais ilustres psiquiatras e psicólogos clínicos através de uma máquina do tempo para tratar dos discípulos de Jesus com sete sessões por semana, eles não poderiam fazer muito. Por quê? Porque os discípulos não tinham consciência dos seus problemas. O grande dilema das ciências que tratam da saúde mental é que o mais importante para a superação de uma doença não é sua dimensão, mas a consciência que um paciente tem dela e a capacidade do seu "eu" em deixar de ser vítima para ser autor da sua história.

Quando treino um psicólogo, enfatizo que ele deve aprender a estimular o "eu" a reescrever as matrizes da personalidade. O "eu", que representa a vontade consciente, deve deixar de ser espectador passivo das misérias e aprender a conhecer o funcionamento da mente, os papéis da memória, a construção básica das cadeias de pensamentos para ser líder de si mesmo. Chamo isso de psicoterapia multifocal, pois trabalha com os fenômenos que constroem multifocalmente os pensamentos, que transformam a energia emocional e que estruturam o "eu".

Todas as técnicas psicoterapêuticas, ainda que inconscientemente, objetivam a reedição do filme do inconsciente e o resgate da liderança do "eu". Mas quanto mais ela é consciente, mais pode ser eficiente.

Por que é tão difícil mudar a personalidade? Porque ela é tecida por milhares de arquivos complexos que contêm inúmeras informações e experiências nos solos conscientes e inconscientes da memória. Não temos ferramentas para mudarmos magicamente esses arquivos que se inter-relacionam multifocalmente.


Alguns teóricos da psicologia crêem que a personalidade se cristaliza até os sete anos. Mas essa é uma visão simplista da psique. Embora seja uma tarefa difícil, é sempre possível transformar a personalidade em qualquer época da vida, principalmente, como disse, se o "eu" deixar de ser espectador passivo, subir no palco da mente e se tornar diretor do script dos pensamentos e das emoções.

Esse conceito representa, na minha opinião, o topo da psicologia mais avançada. Em outras palavras, se refere ao gerenciamento dos pensamentos e das emoções. Esse gerenciamento tem grandes aplicações em todas as áreas: psicologia clínica, ciências da educação, ciências políticas, sociologia, direito, filosofia.

Os antidepressivos e os tranqüilizantes são úteis, mas eles não reeditam o filme do inconsciente e não levam o ser humano a gerenciar suas angústias, ansiedades, idéias negativas. Se não trabalhar nas matrizes da memória e não aprender a ser líder de si mesmo, será dependente dos psiquiatras e dos medicamentos, ainda que os psiquiatras jamais desejem tal dependência.


O GRANDE DESAFIO DE JESUS

Os discípulos eram vítimas das características doentias da sua personalidade. Estavam saturados de áreas doentias nos solos conscientes e inconscientes da sua memória. Não tinham a mínima capacidade de gerenciamento da sua psique nos focos de tensão. Como ajudá-los? Como reescrever a sua memória?

Não há milagres, o processo é complexo. Para reescrever os arquivos da memória é necessário sobrepor novas experiências às antigas. As experiências de tolerância devem sobrepor-se às experiências de discriminação. As experiências de segurança devem sobrepor-se às experiências do medo, a experiência da paciência deve ser registrada em todos os milhares de arquivos que contêm agressividade, e assim por diante. As novas experiências devem ser sobrepostas à medida que os arquivos contaminados se abrem nos focos de tensão.

Quando surge o medo, a crise de pânico, as reações agressivas, os pensamentos negativos, é que o "eu" deve aproveitar a oportunidade para ser diretor do script do teatro da mente e reescrevê-los. Como fazer isso? Criticando, confrontando e analisando inteligentemente cada experiência. Desse modo, ricas experiências se sobreporão aos arquivos contaminados. Assim reurbanizamos as favelas da memória.

Veja o grande problema enfrentado por Jesus. Os seus discípulos não sabiam atuar no seu próprio mundo. Não tinham consciência das suas limitações. Eram tímidos espectadores diante dos seus conflitos. Não aprenderam a mergulhar dentro de si mesmos nem a fazer uma revisão de suas vidas. Como ajudá-los? Como fazer uma pessoa que nunca amou a música, que não aprendeu a tocar piano, tocar com brilhantismo as músicas de Mozart, Wagner, Chopin?

Imagine que os discípulos reeditaram, depois de certo tempo andando com ele, os arquivos que continham suas reações agressivas e intolerantes. Por algumas semanas, mostraram-se amáveis e gentis com todos os que os rodeavam. Eles poderiam achar ilusoriamente que dali em diante seriam os homens mais pacientes e tolerantes da terra. Todavia, muitos arquivos na periferia da memória, que estão nos becos do inconsciente, não foram reeditados.

De repente, alguém os rejeita ou critica, detona-se o gatilho da memória, abrem-se algumas janelas e esses arquivos ocultos aparecem. Então, novamente, eles reagem impulsivamente, ferindo as pessoas sem pensar nas conseqüências dos seus atos. Eles recaem. As recaídas sempre ocorrem nas depressões, fobias, síndrome do pânico ou em qualquer processo de transformação da personalidade. O que fazer? Desistir? Jamais! Só há um caminho. Continuar reeditando os novos arquivos. As recaídas não devem gerar um desânimo, ao contrário, devem produzir uma motivação extra para continuar a reescrever os arquivos que não foram trabalhados.

Como Jesus não queria melhorar o ser humano, mas transformá-lo de dentro para fora, teria de lidar com todas as recaídas dos seus discípulos. Teria de ter uma paciência incomum. Teria de ter uma esperança fenomenal. E teve! Nunca alguém revelou tanta paciência. Eles não entendiam quase nada do que ele dizia. Eles faziam o contrário do que ouviam, mas ele cria que podia virar de cabeça para baixo a vida de todos eles.

Os discípulos o frustraram durante mais de três anos. Nas últimas horas antes de morrer, eles o decepcionaram mais ainda. Jesus tinha todos os motivos do mundo para esquecê-los. Jamais desistiu deles, nem mesmo do seu traidor. Que amor é esse que não desiste?

Jesus sabia que seu projeto levaria uma vida toda. Ele demonstrava com seus gestos e palavras que detinha o mais elevado conhecimento de psicologia. Ele sabia de todo esse processo. Ele não fez um milagre na alma, pois sabia que ela é um campo de transformação difícil de ser operado.

Ele ambicionava algo mais profundo do que os psicólogos da atualidade. Desejava diariamente que eles reescrevessem os principais capítulos da sua história através de novas, belas e elevadas experiências existenciais. Ele criou conscientemente ambientes pedagógicos nas praias, montes, sinagogas, para produzir ricas experiências e sobrepô-las aos arquivos doentios que teciam a colcha de retalhos das suas personalidades. Foi um verdadeiro treinamento. O maior já realizado conscientemente.

Ele programou, como um micro-cirurgião que disseca pequenos vasos e nervos, uma mudança da personalidade dos seus jovens discípulos. Como ele fez isso? Cada parábola, cada leproso, cada perseguição e risco de morte, tudo isso fazia parte do seu treinamento.



FONTE: Cury, Augusto. O Mestre Inesquecível. São Paulo: Academia de Inteligência, 2003. P. 64-69.

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