segunda-feira, 10 de outubro de 2011

DIREITOS FUNDAMENTAIS: REFLEXÕES SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Por Belcorígenes de Souza Sampaio Júnior


(…) Há quem argumente que certas manifestações da liberdade de expressão podem ferir o princípio da igualdade. Entendem que a divulgação de algumas opiniões específicas podem vulnerar grupos menos privilegiados e contribuir para o aumento da desigualdade. Esta corrente fomenta a ideia de que algumas pessoas não devem ser livres para expressar as suas opiniões e preferências.

Equivocadamente, se toma como parâmetro para esta "censura" algumas normas a respeito de assédio sexual e discriminação no ambiente de estudo ou de trabalho. Mas é fácil ver que não trata da mesma coisa. O assédio sexual e a discriminação negativa são condutas que efetivamente merecem reprovação. Mas este pensamento legítimo nunca pode estribar a falsa ideia de que necessário desinfetar o mundo para criar um espaço asséptico para abrigar "grupos minoritários que se julgam alvo de manifestações e expressões que ‘reputam’ ofensivas".

Tal situação seria um retorno a um tempo das "trevas" da ignorância jurídico-política. Na prática, pressupõe a criação de uma espécie de "POLÍCIA IDEOLÓGICA" e, quem sabe, de uma "CENSURA PRÉVIA" em textos e falas. Neste diapasão, seria necessário e conveniente, quem sabe, estabelecer também "TRIBUNAIS CULTURAIS" para julgar as demandas apresentadas pelos "FISCAIS CULTURAIS", o que, verdadeiramente, é um insondável absurdo.


"O ESTADO PODERIA ENTÃO PROIBIR A EXPRESSÃO VÍVIDA, VISCERAL OU EMOTIVA DE QUALQUER OPINIÃO OU CONVICÇÃO QUE TIVESSE UMA POSSIBILIDADE RAZOÁVEL DE OFENDER UM GRUPO MENOS PRIVILEGIADO. PODERIA POR NA ILEGALIDADE A APRESENTAÇÃO DA PEÇA O MERCADOR DE VENEZA, OS FILMES SOBRE MULHERES QUE TRABALHAM FORA E NÃO CUIDAM DIREITO DOS FILHOS E AS CARICATURAS OU PARÓDIAS DE HOMOSSEXUAIS NOS SHOWS DE COMEDIANTES. OS TRIBUNAIS TERIAM DE PESAR O VALOR DESSAS FORMAS DE EXPRESSÃO, ENQUANTO CONTRIBUIÇÕES CULTURAIS OU POLÍTICAS, CONTRA OS DANOS QUE PODERIAM CAUSAR AO STATUS OU À SENSIBILIDADE DOS GRUPOS ATINGIDOS." (DWORKIN, Ronald. O direito da Liberdade : a leitura moral da Constituição norte-americana. Trad. M. Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006).


É preciso sempre muita atenção para não caiamos no erro de acreditar que os institutos da liberdade e da igualdade estão em lados opostos. Na verdade, ambos se complementam na luta pela efetivação dos direitos fundamentais da humanidade. Não existe o tal propalado conflito entre a liberdade e a igualdade, e mesmo se existisse teríamos que fazer a opção pela liberdade, pois o entendimento contrário nos levaria a justificar a existência de um Estado controlador, o que seria uma grave agressão à própria noção de direitos fundamentais, que são exatamente aqueles direitos que os particulares exercem contra o Estado e contra terceiros, e que pertencem à órbita de ação do indivíduo, dentro da eficácia vertical e horizontal dos mesmos.

O ambiente social e político de uma sociedade é plural. É exatamente esta riqueza, ou "mercado de idéias", que faz prosperar as diferenças, e não seu contrário. O direito à diferença e o direito à manifestação do pensamento estão intimamente ligados à própria noção de igualdade, cidadania e representação.

Uma sociedade ideologicamente plural deve admitir a existência de diversas manifestações divergentes. Quando um Estado que se diz democrático resolve intervir indevidamente no processo natural de harmonização das diferenças, surge sempre um problema. É que não compete a um Estado Democrático de Direito selecionar quais manifestações e valores poderão prosperar e quais não. Isto é tarefa da sociedade civil organizada pois tais assuntos se enquadram no âmbito dos interesses da vida privada. A complexidade do corpo social exige distanciamento do Estado das ideologias particulares dos seus cidadãos concretizando assim, efetivamente, as legítimas aspirações e ideais de liberdade.

É importante ressaltar, que uma coisa é o lídimo direito à manifestação ou expressão do pensamento, e outra bem diferente é supor que alguém ou algum grupo tenha o direito de impor a sua visão, ou os seus valores, à sociedade sob a tutela do Estado. Assim como não existe um direito geral a "aceitação das ideias”, não existirá obviamente como contrapartida um direito a "imposição de uma ideia” ou valor qualquer. As ideias devem se confrontar no próprio plano das ideias e não na trincheira do direito ou na ameaça da sanção oficial por parte de um Estado que se pretenda minimamente democrático.

Podemos exemplificar esta questão com a seguinte hipótese: um determinado Estado resolve proibir, através de uma sanção penal ou civil, que os valores e a doutrina "A" (religiosa, moral ou política) seja defendida ou professada pelo motivo desta entrar em confronto direto com os postulados da doutrina "B". Se agir assim, este Estado comete dois erros; Em primeiro lugar viola o direito à liberdade religiosa, ideológica ou liberdade de expressão das pessoas que se filiam à doutrina "A" e, sendo laico e democrático e portanto neutro, se desnatura ao promover, ou facilitar a promoção, da doutrina "B".

Não podemos olvidar, que a identidade do indivíduo é inferida sempre a partir de critérios de semelhança e comparação. Geralmente é definida como a expressão da sua semelhança com algo que seja emblemático enquanto paradigma. Ou seja, para falarmos em identidade do indivíduo precisamos saber as características singulares do mesmo para então comparar com os demais modelos existentes e estabelecer as diferenciações e semelhanças, que definem quem ele é, e porque ele é o que é. O mesmo vale para os diversos grupos sociais. Assim, é possível conceber a liberdade de expressão como manifestação da personalidade e, portanto, componente mesmo da identidade individual.

O segundo sentido da palavra reconhecimento, que é o de identificação, serve para dizer que alguém foi "reconhecido em meio a uma multidão", ou seja, foi identificado. E a política de reconhecimento deve ser entendida como a atitude de particularizar um indivíduo, percebendo-o em sua singularidade. Tentar planificar as diferenças individuais naturais, sob qualquer pretexto, é um absurdo. Avulta o fato de que cada indivíduo é diferenciado e o mérito de ser diferenciado é exatamente o que confere o valor inerente da autenticidade, amplamente protegida pelos estatutos jurídicos dos direitos fundamentais.

Desta maneira, há que se pensar a liberdade de expressão como garantia de que o indivíduo seja reconhecido por seus méritos (valorização) e por sua diferença (identificação). E a identificação, como vertente da política de reconhecimento, se inclina para personalidade do indivíduo, e não apenas para a sua pessoa – enquanto ser humano. Não se reconhece (identifica) o sujeito apenas por ser quem é (sua identidade pessoal: pessoa, cidadão, idade, sexo etc), mas por ser como é (sua personalidade: gostos, preferências, escolhas, ideologias, etc). É como quando se diz ao observar uma pintura ou ler um livro que devido às suas peculiaridades é possível reconhecer (identificar) o seu autor.

Um outro aspecto importante da questão é a moderna compreensão de que cada ser humano tem a sua própria expressão de personalidade única e inigualável, sua “marca” pessoal que o faz singular no mundo. Isto amplia a noção de identidade enquanto grupo religioso, ou social. Dizendo de outra forma. No caso da questão religiosa, por exemplo, duas pessoas não creem sempre da mesma maneira ou na mesma intensidade e isto vai decorrer que a expressão de fé de cada uma vai ser sempre diferente. Tal dimensão subjetiva também deve ser contemplada pelo estudo das liberdades, de uma maneira geral.

Sabendo que todo ser humano independentemente de ser diferente, ou não, do seu ambiente social tem os mesmos direitos que os demais, implica concluir que para o universo jurídico tais diferenças ideológicas devem ser insignificantes, ou seja, devem passar ao largo do domínio e controle estatal. O Estado Democrático, DEVE proporcionar o ambiente adequado para que tais singularidades floresçam, inclusive punindo qualquer tentativa espúria de proibição ou ameaça às liberdades. Assim, se o fiel de uma fé religiosa qualquer se veste de maneira atípica para os padrões seculares da moda e sofre opressão ou discriminação social por causa disto, estará sofrendo um verdadeiro atentado à sua liberdade cultural e religiosa – passível de punição estatal - que lhe garante o direito de ser e se expressar de acordo com as suas próprias e íntimas convicções.


"PODEMOS HABLAR DE UNA IDENTIDAD INDIVIDUALIZADA, QUE ES PARTICULARMENTE MIA, Y QUE YO DESCUBRO EM MI MISMO. ESTE CONCEPTO SURGE JUNTO CON EL IDEAL DE SER FIEL A MI MISMO YA MI PARTICULAR MODO DE SER(...) HAY CIERTO MODO DE SER HUMANO QUE ES MI MODO. HE SIDO LLAMADO A VIVIR, MI VIDA DE ESTA MANERA, Y NO PARA IMITAR LA VIDA DE NINGÚN OUTRO (...) SI NO ME SOY FIEL, ESTOY DESVIÁNDOME DE MI VIDA, ESTOY PERDIENDO DE VISTA LO QUE ES PARA MI EL SER HUMANO(...) LA IMPORTANCIA DE ESTE CONTACTO PRÓPRIO AUMENTE CONSIDERABLEMENTE QUANDO SE INTRODUCE EL PRINCIPIO DE ORIGINALIDAD: CADA UMA DE NUESTRAS VOCÊS TIENE ALGO ÚNICO QUE DECIR(...) SER FIEL A MÍ MISMO SIGNIFICA SER FIEL A MI PROPRIA ORIGINALIDADE, QUE ES ALGO QUE SÓLO YO PUEDO ARTICULAR E DESCUBRIR" (TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la la" política del reconocimiento". México, D.F: Fondo de Cultura Econômica, 1993. p. 22,24,25).


Apenas para formatar o debate, resta dizer que uma coisa é um grupo – ou instituição - realizar o combate ideológico ou a defesa das suas convicções e valores DENTRO DO PRÓPRIO JOGO DEMOCRÁTICO, onde todos podem expressar as suas convicções e trabalhar por elas. Tal postura é lícita e ancorada na própria noção de liberdade de expressão. Outra coisa bem diferente é este mesmo grupo tentar impedir POR MEIOS NÃO DEMOCRÁTICOS – proibição ou perseguição oficial - a manifestação ideológica de uma doutrina ou pensamento qualquer. Isto caracterizaria uma violação, não apenas da dignidade humana, mais do próprio Estado Democrático de Direito.

Por fim o exercício de democracia não pode nunca ser tomado como atentatório da dignidade humana. Atentatório seria tentar emudecer a expressão daqueles que quiserem exercer este legítimo direito. Sob esta ótica não se pode negar que ser partidário da "verdade", muitas vezes significa somente uma questão de ponto de vista, dentro do espaço da livre reflexão autonômica dos indivíduos que estejam em lados opostos, em um debate ideológico.


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Parcialmente extraído do Texto LIBERDADE RELIGIOSA VERSUS LIBERDADE DE EXPRESSÃO, do próprio autor, disponível na íntegra em: http://jus.com.br/revista/texto/17660/liberdade-religiosa-versus-liberdade-de-expressao/1

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