segunda-feira, 17 de maio de 2010

Envolvimento implícito

por Olavo de Carvalho

31 de janeiro de 2006



RESUMO: Nunca vi um esforço tão patético para extrair uma denúncia do nada como essa matéria contra a Opus Dei publicada pela Época.



Não conseguindo descobrir nenhum Mensalão de direita, o semanário Época denuncia: algumas pessoas devotadas à vida religiosa no Opus Dei fazem exercícios espirituais, vivem uma disciplina quase monástica e – supremo horror! – praticam a castidade. Para cúmulo do escândalo, informa a revista, "Geraldo Alckmin, pré-candidato à Presidência pelo PSDB, recebe formação cristã em encontros noturnos no Palácio dos Bandeirantes."

Já pensaram uma coisa dessas? Encontros noturnos, porca miséria. A que ponto chegamos, hein? Por que o governador não trata de fazer algo decente, por exemplo sair-se requebrando todo em encontros diplomáticos como o ministro Gilberto Gil ou entornar garrafas de uísque presidencial?

E essa arraia-miúda do Opus Dei, então, que movida pelo mau exemplo do chefe do executivo estadual se segura e se reprime em vez de se masturbar honestamente como, a julgar pela lógica da denúncia, o fazem com regularidade os redatores de Época e os demais cidadãos de bem?

Nunca vi um esforço tão patético para extrair uma denúncia do nada como essa matéria contra a Opus Dei. Jamais tive a menor simpatia por essa organização, nem muito menos pelo sr. Alckmin. Ela me parece uma devota perda de tempo, ele uma reencarnação yuppie do seu célebre homônimo mineiro, que entrou para a História como campeão nacional de murismo, indefinição, nulidade e piedosa abstinência de qualquer atitude pessoal no que quer que fosse.

Mas tudo o que a reportagem nos informa contra o governador é que ele procede como um membro qualquer da Opus Dei e que a organização, por seu lado, faz tudo o que seu regulamento professa fazer, ajudando os interessados a viver como discípulos de Santo Ignacio de Loyola no meio de carreiras mundanas embriagantes e tentadoras, coisa que é obviamente impossível sem alguns hiperbolismos disciplinares só capazes de espantar quem não saiba nada sobre práticas ascéticas, mais ou menos idênticas em todas as religiões, épocas e civilizações.

Bella robba! No entanto, a matéria é notável precisamente pelo tratamento verbal que dá à ausência de conteúdo, transformando-o em coisa vagamente assustadora por meio da exploração hábil do preconceito anti-religioso, tomado como critério universalmente aceito. À LUZ DESSE PRECONCEITO, NÃO PRECISA HAVER MESMO NADA DE ANORMAL NA CONDUTA DE PESSOAS CRISTÃS, POIS SEREM CRISTÃS JÁ É SUPREMAMENTE ANORMAL E CONDENÁVEL.

O truque funciona assim. Suponha uma platéia inteiramente composta de inimigos do espiritismo. Se, ali, você sai acusando alguém de espírita, a denúncia é ouvida como coisa grave e digna de atenção. A mesma denúncia, perante uma platéia de espíritas, soaria como puro nonsense, já que ninguém ali está predisposto a achar que ser espírita é coisa ruim. Suponha agora uma platéia indecisa, nem amiga nem inimiga do espiritismo. A pura acusação de "espírita", desacompanhada de qualquer prova da suposta ruindade do espiritismo, só serviria para uma coisa: para enganar cada membro individual da platéia, levando-o a crer que todos os demais já conhecem as maldades do espiritismo de cor e salteado, sendo ele o único ignorante no assunto. Pegos nessa armadilha, noventa por cento dos seres humanos adeririam mais que depressa à denúncia, só para não confessar ignorância. Assim, sem nada dizer de substantivo contra o coitado do espírita, você induziria boa parte do público a pensar mal dele sem saber por que.

Dou a essa técnica o nome de "envolvimento implícito". Ela é um dos usos mais calhordas que se pode fazer da linguagem. Sem dizer nada de substantivo contra a Opus Dei ou o governador Geraldo Alckmin, Época conseguiu induzir o público a pensar mal dos dois e até do catolicismo em geral, resguardando-se ainda de qualquer suspeita de havê-los acusado do que quer que seja.

Criar uma situação do nada, por meras palavras, pode ser uma arte. Pode ser teatro, poesia, ficção, até mesmo de alta qualidade. Pode ser até hipnose. Mas jornalismo não é. Como, porém, Época se alardeia nacionalmente uma publicação jornalística exemplar, cada leitor leigo, que até o momento não imaginava ser isso jornalismo, suporá que ele próprio era o único a ignorá-lo e, mais que depressa, admitirá que jornalismo é precisamente isso. Donde tirará facilmente a conclusão de que algo de muito grave, efetivamente, pesa contra o governador Geraldo Alckmin, o Opus Dei e a Igreja Católica, embora ele não saiba o quê.

O envolvimento implícito é um truque temível porque tem o dom de confirmar-se a si mesmo. Ele não é jornalismo, mas é preciso um hábil domínio da técnica jornalística para praticá-lo – e, nesse sentido puramente formal, ele é jornalismo, e até de alto nível. Alto nível de safadeza, mas alto nível de qualquer modo.

Quando uma revista semanal com o prestígio de Época se permite fazer do seu leitor o alvo desse tipo de gozação maquiavélica, e usá-lo como arma de guerra contra a religião da maioria dos brasileiros, é porque o senso do certo e do errado já desapareceu por completo do horizonte visível da classe jornalística.


DINES X MAINARDI


Ainda mais desavergonhado que Época é o Observatório da Imprensa, que já começou a cantar vitória contra Diogo Mainardi quando um dirigente do Opus Dei apareceu gabando-se de que duzentos jornalistas de elite haviam freqüentado encontros da organização. Estava aí a prova, berrou Alberto Dines, de que o Opus Dei, e não o petismo-comunismo, mandava na mídia brasileira. Haja paciência! Desde logo, o sujeito não citou um único nome: o placar ainda está cem a zero para Mainardi. Em segundo lugar, entre um jornalista participar de um retiro de fim de semana e tornar-se um militante a distância é longa. Em terceiro, duzentos jornalistas não bastam para suprir sequer as vagas de chefia em revistas especializadas e house organs só na cidade de São Paulo. Para exercer alguma influência na mídia seria preciso começar de mil, pelo menos. O Opus Dei está entrando no mercado dos altos cargos na imprensa com meio século de atraso em relação ao Partido Comunista, cujo legado de posições foi transferido em parte para o PT na década de 80. Por fim, quem disse que todo militante do Opus Dei é uma cabeça feita, fiel ao papa e às tradições da Igreja? Está aí o próprio sr. Alckmin, politicamente corretíssimo, adepto do casamento gay e, no mínimo, membro de um partido pertencente à Internacional Socialista, comprometido até à medula, portanto, com a estratégia do globalismo de esquerda. Apostar em Alckmin (ou de novo no próprio Serra) como alternativa "direitista" ao petismo é repetir a farsa das eleições de 2002.



Publicado pelo Diário do Comércio em 30/01/2006.

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