sábado, 1 de maio de 2010

Tolerância real

por Miguel Pinheiro

15 de junho de 2004


"Em geral, não se pedem companheiros, mas cúmplices. E este é o
risco da convivência ideológica."

Carlos Drummond de Andrade


"Vai e não peques mais para que não te aconteça coisa pior".

Jesus Cristo


Tolerância é uma das palavras da vez em nossa época. Por palavras da vez refiro-me àquelas cujo conteúdo co-movedor, isto é, de mobilização e aceitação tácita, é atuante de modo intenso no presente momento. Não há viv'alma que vá ter o displante de recusar uma reinvindicação feita em nome da nobre virtude da tolerância. Eu mesmo não o faria.

Ocorre que os enganadores – normalmente enganados eles mesmos de alguma forma, ainda que em muitos casos tenham escolhido tal condição deprimente – vivem no terreno movediço de uma ambigüidade que ultrapassa a mera semântica, mas atinge sua própria percepção de mundo. Um tanto deslumbrados com a descoberta pós-puberdade de que o mundo possui uma dinâmica mutável e estarrecedora, julgam ser o mais inteligente cristalizar tal deslumbre na posição dogmática de que toda essa fluidez é mesmo a essência da realidade, sem cogitar que o movimento só pode ser visto como tal se houver uma referência imóvel de modo que a percepção deles da fluidez deveria levar a cogitação do imóvel. Mas não é assim e tudo se mistura conciliatória e antropofagicamente na mente dos neolíticos do pensamento (pois que sem a educação e maturação adequadas cada um de nós pouco difere do homo sapiens da savana).

Por tal fenômeno é que a palavra tolerância foi defumada até a transmutação pelo campo semântico de uma outra: cumplicidade. Tendo já ocorrida a alquimia nefasta, demandará pouco menos que um parágrafo para esclarecer o engodo realizado em toneladas de discursos ao longo dos anos. Veja-se bem que "tolerar" necessariamente implica em discordar, repudiar ou desgostar. Toleramos a música chata em amor e consideração ao parente querido que a houve. Talvez toleremos por ser o aniversário dele ou porque afinal até então apenas as nossas músicas haviam tocado. Se gostássemos da música dele – ou se viéssemos a aprender a gostar – já não haveria tolerância, mas deleite semelhante ao do parente. E compartilharíamos com ele – enquanto cúmplices – conversas sobre o cantor e sua vida e suas novas canções. Notaram?

Pois bem. O que nos pedem então os grupos que exigem tolerância com bandidos? Ou com o aborto? Ou com o homossexualismo? Ou com grupos indígenas que além de reserva de território tem a reserva do direito de matar? Tolerância real ou cumplicidade? Querem regras de boa convivência ou uma conversão ideológica para suas respectivas causas políticas? Tais perguntas, obviamente, são retóricas. Se uma pessoa sentir desconforto diante de um casal homossexual, e expressá-lo, desde aquele momento é homófobo. Não é suficiente que diante de um aborto a pessoa se limite a reprovar o ato. É fundamental para tais grupos que ela aja como se concordasse ou gostasse (é verdade que se faz necessário gostar ou concordar de fato, a hipocrisia é suficiente e tomada como alta virtude em tais casos).

Jesus, sempre tomado como modelo máximo da tolerância por andar em meio a prostitutas e coletores de impostos, é invariavelmente citado como exemplo de que tolerância implicaria que "você tem que aceitar as diferenças de cada um, pô". Esse aceitar é venenoso por misturar tolerância com cumplicidade. Temos sim que ser tolerantes, isto é, precisamente amar as pessoas mas repudiar seus erros. Toleramos os erros das pessoas – sem deixar de considerá-los erros – em nome do valor maior que é a pessoa em si, o valor do amor ao próximo. Nisto seguimos precisamente o exemplo de Jesus que, como esquecem os que o citam em nome da tolerância falsa, sempre se dirigia às pessoas em erros com um "se", ou "mas" ou uma condicional qualquer: "vai, mas não peques mais ou vai te acontecer coisa pior" ou seja, "Eu te salvei dessa, mas se você continuar insistindo em cometer tais besteiras eu não vou poder te ajudar de novo, a condição para você continuar bem é parar de cometer esses erros".

Os ditos neolíticos gostam de alegar que é impossível amar uma pessoa e reprovar seus atos. Talvez digam isso por se sentirem menos amados quando alguém os reprova (ou reprovou), mas tal inabilidade para lidar com a frustração em satisfazer ao outro não é capas de mudar a realidade. De fato, a prática de amar a pessoa e detestar os atos nos é muito comum e corriqueira. Fazemo-lo diariamente conosco mesmo. Nada mais corriqueiro que comentarmos: "Nossa mas que grande besteira eu fiz!" ou "Putz, que asno que eu fui" e ainda "Num acredito que eu fiz essa bobagem". Constantemente classificamos negativamente atos nossos sem que por isso deixemos de amar a nós mesmos. Tão comum e saudável é isso, que aqueles que se deixam sobrecarregar por tal percepção e deixam de se amar, ou então aqueles que se recusam a encarar seus erros como tais e se enchem de subterfúgios de desculpas, são tidos como necessitados de ajuda, seja de amigos ou de profissionais da psicologia. Igualmente age a tolerância real para com o próximo: "Cara, isso que você fez é uma grande besteira" exatamente como diríamos para nós mesmos. Qual a maior demonstração de amor-próprio senão o reconhecimento dos nossos erros seguidos de um juízo de valor que os coloca em escala de seriedade? E não devemos amar ao próximo como a nós mesmos? Tal é a tolerância real. Apenas alguém que não é nem G, nem L, nem S pode ser realmente tolerante. Se "aceita" já é S, um "cúmplice".

Rever as questões conflitantes da sociedade sob uma tal re-descoberta perspectiva é urgente. Rigorosamente nenhuma questão de grupos que discordam conflitantemente jamais será resolvida enquanto a palavra tolerância for usada na esperança que um dos grupos ou os dois se converta a um estado de cumplicidade, na verdade deixando seus gostos (que podem expressar valores divergentes) para adotar os valores e opções de um terceiro que se considera acima da questão (quando não pedem ostensivamente que simplesmente adote os valores do grupo rival, o que é mais sério ainda). Também creio que a tolerância é uma necessidade urgente. Mas a tolerância real, aquela que diz, eu discordo de você, mas vamos respeitar nossos espaços em nome do valor maior de nossas vidas e pronto. É assim que aprenderemos, inclusive numa atitude mais madura, que alguém falar que discorda do que pensamos, que não gosta do que somos, não é intolerância ainda que por vezes possa ser preconceito. Sem uma tal maturidade, não apenas a convivência se torna impossível mas o próprio debate, o que leva a uma falta de comunicação que por sua vez, essa sim, pode levar a violência e agressão.

Tolerância real, enfim, tem a ver com respeitar o direito a errar do próximo. Existe aí a questão de quando o erro de alguém afeta outras pessoas. Mas então já é um outro desenvolvimento e um outro debate. No que concerne a este em particular o importante é que fiquemos mais atentos aos sedutores que pedem nossa tolerância em palavras mas querem mesmo é a nossa cumplicidade em atos para aquilo que nós mesmos entendemos como errado.


P.S. Caso vivessemos em regime de normalidade e sã intelectualidade esta nota não seria necessária. Mas como não é caso, vá lá: Ao listar as questões das causas homossexuais e abortistas ao lado de bandidos não estou igualando-as quanto a sua natureza, como se desmunhecar tivesse o mesmo valor de dar um tiro em alguém. Como o contexto deixa bem explícito, o assunto principal é criticar o ato de utilizar o discurso da tolerância para obter cumplicidade; e é tal prática que é o item comum que coloca todos estes grupos juntos numa mesma lista e não nenhuma outra comparação.


(Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=2139)

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