segunda-feira, 3 de maio de 2010

Liberalismo e aborto

por João Luiz Mauad

02 de maio de 2007



De acordo com a tradição liberal, os direitos essenciais da pessoa humana são os de caráter negativo, estreitamente vinculados às limitações das ações do poder público constituído em relação aos indivíduos e destes em relação aos seus semelhantes. De acordo com essa concepção, o efetivo exercício de um direito não pode requerer que outros sejam forçados a agir para garanti-lo, mas somente que se abstenham de interferir para cessá-lo. O meu direito à vida, estimado leitor, não exige que você labore para manter-me vivo mas, pura e simplesmente, que se abstenha de matar-me.

Os direitos defendidos pelos liberais são, portanto, exclusivamente aqueles chamados por Locke de naturais: o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Deles derivam todos os outros, como a liberdade de expressão, o direito de ir e vir ou de dispor dos frutos do próprio trabalho. O exercício desses direitos, como é fácil intuir, não demanda a concessão de quaisquer benefícios por parte do Estado ou de terceiros ao seu titular, mas tão somente que esses entes abstenham-se de violá-los.

Pela ótica liberal, a existência do Estado está vinculada à necessidade de organização de uma força comum, mais poderosa que qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos, encarregada da defesa dos direitos acima mencionados. Com efeito, o direito coletivo tem o seu princípio, a sua razão e a sua legitimidade no direito individual. Por outro lado, só podemos delegar aqueles direitos de que efetivamente dispomos. Assim como a força de um indivíduo não pode legitimamente atentar contra a vida alheia, tampouco a força coletiva pode ser aplicada legitimamente para destruir a vida de uma pessoa.

O mesmo raciocínio é válido para a defesa desses direitos. A lei, ao promover a substituição das forças individuais pela força comum, deve garantir que esta atue estritamente nos limites em que aquelas teriam o direito de fazê-lo, ou seja, para garantir ao indivíduo a sua própria vida, liberdade e propriedade. Enfim, para fazer prevalecer a justiça. Ao Estado não deveria ser permitida nenhuma ação – ou reação – que não estivesse autorizada a cada cidadão.

Pois bem: em nome dos direitos inalienáveis à liberdade e à propriedade sobre o próprio corpo, alguns auto-proclamados liberais têm se colocado, a meu ver equivocadamente, em defesa da descriminalização do aborto.

Qualquer manual sobre liberalismo, por mais conciso e superficial que seja, dirá que o exercício da liberdade pressupõe a responsabilidade individual irrestrita pelas conseqüências dos próprios atos. Isto quer dizer que toda e qualquer ação individual deve ter em conta os possíveis desdobramentos sobre os direitos – vida, liberdade e propriedade - dos demais.

Meu direito de propriedade permite que eu escolha quem pode ou não adentrar minha residência ou qualquer outra propriedade de que eu seja titular. No entanto, meu direito acaba onde começa o do outro e, portanto, não posso atentar contra a vida daqueles que lá estiverem, desde que convidados ou autorizados, a menos que eles tenham, antes, atentado contra a minha própria. Em outras palavras, o fato de alguém estar dentro de minha casa, desde que devidamente permitido, não me dá o direito de matá-lo ou colocar sua vida em risco, a menos que seja em legítima defesa.

Circunstâncias extremas, inusitadas ou indesejáveis não podem ser descartadas. Imagine, caro leitor, a seguinte situação: durante uma festa na casa de Pedro, Paulo é acometido de um mal súbito. De acordo com os médicos, sua remoção para o hospital é desaconselhada, sob risco de morte. Segundo os especialistas, Paulo deverá ficar em repouso absoluto durante algumas semanas, até que esteja em condições de ser transferido. Por mais incômoda que a presença de um estranho em sua casa possa ser, seria válido, em nome do direito de propriedade, que Pedro colocasse a vida de Paulo em risco porque, passado algum tempo, sua presença ali tenha se tornado um estorvo?

Assim como no exemplo acima, um embrião humano que se instala no corpo de uma mulher, exceto em casos extraordinários de estupro, é produto de uma ação consciente, cujas conseqüências são bastante previsíveis. O ato sexual é uma escolha quase sempre voluntária e livre. Portanto, a responsabilidade individual a ela inerente não pode ser recusada, isentada ou transferida. A liberdade de escolha tem como contrapartida a responsabilidade irrestrita e desta o agente não pode fugir, muito menos quando estão envolvidos direitos de outros seres humanos, ainda que nascituros.

Assim como ocorre quando alguém arrenda, por contrato voluntário, uma propriedade por tempo determinado, a mulher perde a posse e o uso exclusivo do próprio corpo no momento em que engravida. É como se houvesse um contrato entre ela e o futuro ser que carrega no ventre, um ser que ali se encontra, única e exclusivamente, em função do próprio livre arbítrio e escolhas individuais da mulher.

Muitos alegam que o embrião só passa de fato à condição de ser humano após um (in)determinado prazo. Não se discute propriamente a existência da vida, mas da vida humana. Defendem que o "aglomerado de células embrionárias" seria apenas algo como um ser humano em potencial, que existe como possibilidade, mas ainda não é realidade e, nesta condição, ainda não teria direitos, estando fora da proteção (abrigo) legal do Estado. Trata-se de uma discussão filosófica (e biológica) bastante antiga e de difícil solução, porém a meu ver estéril – pelo menos do ponto de vista da doutrina liberal.

Quando se trata do direito à herança, por exemplo, ninguém discute, muito menos um liberal, o nível de evolução de um feto no instante da morte do pai. A se aceitar a possibilidade de extinção da vida embrionária antes de determinado estágio, sob o argumento de que a vida humana ainda não está formada, seria também o caso de se contestar o direito de herança em caso de morte paterna dentro deste mesmo estágio. Confesso que desconheço qualquer antecedente a esse respeito.

No mesmo diapasão, poderíamos citar diversos exemplos de propriedade privada sobre bens em potencial. Muitas vezes, ao registrarmos uma patente, nada mais existe do que a possibilidade de vê-la transformada em alguma coisa de valor no futuro. A própria existência física da coisa pode ser apenas virtual. No entanto, já neste momento, o direito de propriedade é assegurado pelo Estado, direito esse, diga-se de passagem, que nenhum liberal sequer ousaria contestar.

Ora, se a lei deve proteger a propriedade de um objeto apenas virtual, por que não também uma vida humana, ainda que potencial?

A possibilidade de formação de um embrião humano é única na natureza e altamente improvável. A probabilidade do encontro de um determinado espermatozóide com um óvulo específico é estatisticamente desprezível – muito mais difícil do que alguém ganhar na mega-sena cem vezes seguidas. A vida (mesmo que ainda potencial) humana que existe num "aglomerado de células embrionárias" não pode deixar de ser vista, portanto, como algo extremamente valioso para o seu dono (ou futuro dono). Infinitamente mais valioso que qualquer herança material paterna, que ao nascituro é garantida pela lei – na imensa maioria dos países -, seja em que estágio de desenvolvimento fetal estiver.

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