domingo, 18 de abril de 2010

ANÁLISE DO ARTIGO "FUNDAMENTOS DE BIOÉTICA”

2006

Por Belcorígenes de Souza Sampaio Júnior

O texto intitulado Fundamentos De Bioética, de autoria de DIEGO GRACIA,1 aponta didaticamente as diversas possibilidades decisórias para casos como o descrito na sentença 166/96 do Tribunal Constitucional Espanhol, que trata de alguns aspectos relacionados com a possibilidade de recusa de tratamento médico, transfusão de sangue, em nome da liberdade religiosa.

Tal situação se configura como um caso de colisão de direitos fundamentais. De um lado o direito à vida e de outro o direito a liberdade, neste caso, a liberdade religiosa. Discussão profundamente atual, pois ao contrário das previsões de cunho racionalista que preconizavam um recrudescimento da fé religiosa diante dos postulados científicos, em uma nova compreensão de mundo, a fé continua viva e Deus também.

Nesta rápida abordagem tentaremos esclarecer os aspectos principais apontados pelo autor a respeito desta singular problemática, e ao final procuraremos nos posicionar, sucintamente a respeito do tema.

No texto o autor bifurca o problema em duas dimensões jurídicas diferentes no tocante ao objeto do direito subjetivo. No primeiro caso se refere a alguém, capaz, que recusa para si mesmo tratamento médico que pode lhe salvar a vida. No segundo caso analisa a recusa para tratamento médico para salvar a vida de uma menor incapaz e sob a tutela do pater potestas, sendo o titular deste direito o responsável pela recusa do indispensável tratamento salvador.

A seguir o autor constrói sua análise a partir de quatro possibilidades interpretativas diferentes, chegando a resultados diversos conforme o prisma jurídico doutrinal escolhido.

Abordagem racional naturalista: Esta é a primeira visão que, como indica, concede à vida um valor supremo e, conseqüentemente, acima da liberdade, o que uniformiza a decisão para ambos os casos, prevalecendo sempre a vida sobre a liberdade.

Abordagem racional especulativa: essta segunda hipótese orienta a decisão, sob forte influência marxista, para a primazia do bem social (vida), sobre o bem individual (liberdade), o que uniformiza também a decisão.

Abordagem racional instrumental ou estratégica: A terceira hipótese, de cunho positivista, indica uma decisão diversa para cada caso. No caso do adulto capaz, deve prevalecer a sua liberdade de crença e a sua decisão consciente na recusa de tratamento médico, ainda que isto lhe custe à vida. No caso da menor incapaz, a decisão deve ser oposta, prevalecendo o direito à vida sobre o direito à liberdade.

Abordagem racional prática: Nesta última hipótese o autor se detém um pouco mais e aprofunda a discussão. Sob uma ótica kantiana investiga o assunto, estabelecendo alguns parâmetros ou critérios para análise.

Em primeiro lugar contrasta os problemas com alguns critérios morais, ou princípios, conhecidos como a regra de ouro ou o imperativo categórico. Entende que a negação da liberdade religiosa ao adulto capaz para dispor da sua própria vida, em consonância com as suas convicções pessoais, se constitui uma ofensa inaceitável a estes princípios.

No caso da menor incapaz o inverso acontece e a permissão para que seu pai disponha da sua vida se constitui em uma negação destes mesmos valores já citados.

Para isto elege como critério de verificação a comparação das tábuas de valores presentes: Tábua de valores dos direitos humanos (objetiva); Tábua de valores do indivíduo (subjetiva). Depois contrasta esta comparação com os bens jurídicos em questão e as suas respectivas titularidades, bem como com a capacidade jurídica dos sujeitos de direito mencionados.

No caso do adulto capaz a decisão ética e aquela que protege a sua liberdade de consciência fazendo prevalecer a sua tábua de valores individuais sobre a tábua geral dos direitos humanos. Isto também torna a própria decisão do indivíduo ética, pois age em consonância com a sua consciência. Neste caso deve prevalecer a tábua de valores objetiva, em função da sua incapacidade jurídica no que se refere a manifestação da sua vontade e da sua impossibilidade de suportar pessoalmente as conseqüências de seus atos, como é corrente na doutrina jurídica. Assim, permitir ou querer arriscar a vida da menor deve ser considerado não ético.

Por último, analisa a bondade do ato e as suas conseqüências. Tenta esclarecer aqui alguns aparentes paradoxos presentes na questão como, por exemplo, se é possível dizer que um ato de deixar alguém morrer por recusar a tomar sangue pode ser entendido como um ato de bondade, em última instância.

No caso do adulto conclui que respeitar a sua liberdade de consciência e a sua opção de morrer por suas crenças é uma boa ação. Neste caso fica patente, para o autor, que o que se exige é uma conduta omissiva por parte de terceiros, não se tolerando, como é óbvio, nenhum tipo de conduta comissiva nesta direção.

Também aqui o contrário sucede com relação a menor incapaz. Neste caso o ato de bondade é poupar-lhe a vida, contrariando a vontade de seu pai, sendo para isto indiferente a própria vontade da menor e ainda que a mesma se coadune com vontade do seu pai. Encerra a análise da bondade do ato afirmando que “deixando morrer à menina haveria uma desproporção objetiva entre o bem que se perde, a vida, e o valor que se protege, a liberdade e autonomia; e no caso do maior não”.

Encerra afirmando que depois das considerações feitas se torna relativamente fácil tomar uma decisão jurídica que não seja precipitada nem imoral. Ao indivíduo maior e capaz de se permitir que arrisque a sua própria vida em conformidade com a sua liberdade de consciência e crença, ainda que exista aqui um conflito entre o direito e moral social. À menina, menor e incapaz, de se obrigar a que se submeta à transfusão de sangue que lhe pode salvar a vida ainda que este ato contrarie a vontade ou crença de seus pais ou até da própria menor. Afirma assim que no caso da menor o conflito entre direito e moral social deixa de existir, pois caminham, ambas, na mesma direção.

De nossa parte, entendemos que a proteção constitucional, nos Estados de Direito, atenta aos valores culturais e aos direitos dos homens inclui na sua esfera de tutela a escolha livre de uma religião ou fé, bem como o direito de expressar e viver esta fé. Trata-se hoje de um postulado inexorável, dentro do universo jurídico, este direito subjetivo promovido ao patamar de Direito Fundamental dos homens.

Não é a liberdade religiosa outra coisa senão uma expressão natural da liberdade individual, sendo esta o pressuposto lógico do Estado moderno. A idéia de uma voluntas livre é indispensável para a construção de um “pacto social” e por isso a sua garantia se constitui em um dever de qualquer Estado democrático. Qualquer restrição indevida ao exercício da liberdade religiosa se configura, em última análise, em uma restrição ao livre exercício do pensamento.

Por outro lado as históricas tentativas de simplificar as crenças religiosas no intuito de lhes reduzir a um mínimo comum, sob o argumento da construção de uma paz ideal através da identidade de uma única fé, se constitui em uma abstração utópica e que reduz indevidamente a multiplicidade, riqueza e diversidade do pensamento humano, não restando assim outra opção lógica senão aquela que já mencionamos, ou seja, a proteção estatal a manifestação da diversidade religiosa e aos locais de culto. A questão, porém, pode tomar uma dimensão nova quando entramos no terreno de práticas religiosas contrárias aos costumes sociais; a lei ou a outros direitos fundamentais.

No primeiro caso, de contrariedade aos costumes sociais, estamos diante de um enfrentamento do direito oficial com a moral de um povo. Ainda que a moral sendo norma cultural de controle da conduta humana guarde afinidade umbilical com o direito, não tem como este um caráter heterônomo e, portanto, deve ceder diante da “voluntas legis”, dentro de um Estado de Direito. Assim sob um prisma eminentemente jurídico, ainda que a efetivação da legitimidade social ou eficácia seja um objetivo desejável, no universo de um Estado Democrático e Constitucional deve prevalecer sempre a vontade do legislador.

O segundo caso, contrariedade à lei, não suscita maiores deliberações pois os sistemas jurídicos democráticos possuem os mecanismos necessários e legítimos para coibir e punir as práticas ilegais de qualquer natureza, inclusive religiosas, que porventura surjam no seio social colocando em risco a segurança desta mesma sociedade.

Na terceira hipótese, de antinomia de direitos fundamentais, a questão se apresenta com uma maior complexidade. Nestas searas nem sempre se possui um critério objetivo de decisão, transferindo-se a solução para uma esfera de forte cunho hermenêutico. Tal situação quase sempre provoca incômodos em determinados círculos jurídicos que enxergam, nestes casos, uma demasiada dose de subjetividade. Na verdade isto não constitui, em si mesmo, em um problema estranho ao universo do pensamento. Esta “agonia” que alguns operadores do direito manifestam quando se confrontam com conflitos desta natureza, talvez se dê em função da idéia ainda é muito presente na praxis jurídica em geral, de que a norma jurídica possui uma resposta “científica” e exata para solucionar cada litígio. Acreditamos que no âmbito do direito positivo o que podemos dizer nestes casos, é que uma leitura do problema sob a ótica da principiologia constitucional nos permite vislumbrar as possibilidades da decisão jurisdicional para a questão, sendo a noção de ponderação e proporcionalidade fundamental como ferramenta ou método decisório.

Observamos que no texto o autor procura, a partir dos fatos narrados, trazer a tona a discussão sobre os fundamentos do direito positivo e das decisões judiciais, buscando uma resposta que vá além do prisma das meras considerações positivistas, alcançando uma legitimidade social e ética. É verdade que em situações onde valores jurídicos e sociais importantes estão em conflito, a mera subsunção positiva do fato à norma não se mostra suficiente aos nossos olhos como uma perspectiva de justa decisão.

Por fim, entendemos que as doutrinas clássicas sobre os direitos subjetivos encontram-se aquém da realidade jurídica moderna. O caso em análise demonstra que a antiga doutrina de que os direitos subjetivos têm como objeto as “coisas”, as “ações” e as “pessoas”, continua a fazer estragos na mentalidade social. A noção deste pai de que possuiria um “direito” sobre a “pessoa” da filha é a base deste e de outros conflitos semelhantes. Na verdade, entendemos que os “direitos potestativos” não incidem sobre a "pessoa ou terceiros" mais, sim, sobre os "direitos destes terceiros" criando, assim uma categoria de direitos sobre direitos o que, em parte, já eliminaria razoavelmente esta espécie de problema ora analisado. Mais isto já é assunto para uma outra discussão.




Belcorígenes de Souza Sampaio Júnior
Advogado
Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito
Especialista em Direito Processual Civil
Mestre em Direito Público
Mestre (D.E.A.) em Direitos Fundamentais
Doutorando em Direitos Fundamentais/Liberdade Religiosa


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1- GRACIA. Diego. Fundamentos de bioética. Madrid: Eudema, 1989

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