segunda-feira, 19 de abril de 2010

PROMETEU ACORRENTADO

Por Sérgio Humberto de Quadros Sampaio


Afora o evidente enriquecimento pessoal e o prazer da leitura, na peça Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, podemos buscar algumas lições sobre um grave problema que aflige a sociedade brasileira, notadamente nos grandes centros urbanos.

É sabido que os gregos assistiam a peças de teatro com verdadeiro entusiasmo. Do ano de nascimento de Ésquilo (por volta de 525. A.C.), datam as primeiras tragédias e comédias gregas.

Mas Prometeu, personagem sempre invocado como amigo da espécie humana, herói valente e loquaz, não surge de uma nuvem de paz e tranqüilidade. Por esta época, primeiro o Egito e depois a Grécia cairiam sob o domínio da Pérsia (e enquanto isto, desviando um pouco à direita, espantado com os horrores da vida, Siddharta Gautama convolava-se em Buda).

Sobre seu autor, os livros dizem que foi um patriota. Lutou inclusive nas gloriosas batalhas de Maratona, de Salamina e de Plateia. Recebeu honrarias e desfrutou da fama, até morrer em Gela, na Sicília, em 456 A.C.

Mas o que nos interessa é Prometeu Acorrentado, e não Ésquilo. Bem se diz que a morte de um poeta não obsta o surgimento do poema. Prometeu não foi poeta, é certo. Prometeu foi somente um ser que ousou imprimir atitude a um sentimento de comiseração.

Segundo a “Teogonia”, Prometeu, que era um titã, compadeceu-se do destino que Júpiter, recém empossado do governo do universo, reservara para a humanidade: reduzi-los a uma condição semi-animalesca, ou até destruídos, para dar lugar ao surgimento de uma nova espécie.

Condoído com a sorte adversa dos humanos, Prometeu roubou uma faísca do fogo celeste e dotou os homens da razão, e da faculdade de cultivar a inteligência, as ciências e as artes.

Como castigo por seu ato impetuoso, Prometeu é acorrentado a um inóspito rochedo (no Cáucaso), e ali permanece por séculos. Por fim, um derradeiro martírio, Júpiter manda diariamente um abutre devorar o corpo imortal do herói decaído (seu fígado).

A história de Prometeu assemelha-se a de outros benfeitores do imaginário popular. Se prestarmos atenção, podemos ver nele um Robin Wood sem o arco, a flecha, e o saiote. Ou um Zorro sem capa, espada ou bigode. Em palavras atuais, pode-se dizer que Prometeu foi alguém que se revoltou contra o “sistema” opressor e contra os destinos traçados para a “comunidade dos homens” e, com sacrifício da própria liberdade, resolveu colocar a mão no fogo.

Mas, veja-se, neste ponto o exame da história de prometeu pode bifurcar-se e ficar assaz perigosa. É que a conversa de que se está roubando do mais forte para ajudar ao mais fraco serve, muitas vezes, para justificar condutas das mais desastrosas. Esta filantropia com o alheio, mesmo quando realizada com boa intenção, costuma fundear na pura bandidagem.

Neste descompasso, e a despeito da famosa justiça alternativa, proposta e feita por juízes, assoma o real perigo de se começar uma era de justiça alternativa produzida por bandidos. É que no ritmo desta empreitada duvidosa, não se tem tempo para esperar a máquina do Estado.

Friamente, sob este ponto de vista, Prometeu, ao que parece, deve continuar acorrentado. Pelo menos os Prometeus traficantes, contraventores, aliciadores, que buscam ocupar os espaços sabidamente criados pela ausência de políticas sociais sérias, destinadas reverter o sofrimento e a penúria da população de baixa renda.

A comparação da população citadina favelada com os homens miseráveis socorridos por Prometeu é óbvia. Também aqui, estão reduzidos a uma condição quase animalesca. Prontos para aceitar um “salvador” que lhes dê uma chama de razão, e da faculdade de cultivar a inteligência, as ciências e as artes...

Aliás, para os homens da vida real, nem são necessárias tantas benesses. Contentam-se, e têm motivos para isto, com bem menos do que o presente de Prometeu.

Cabe perguntar se o cidadão espoliado pelo descaso do Estado deveria mesmo optar por rebater os dúbios “presentes” que lhe são oferecidos, p.ex., pelo traficante do bairro, negando-se a se tornar conivente, ou aceitá-lo e render honrarias a quem lhe estendeu a mão.

Para este cidadão talvez só restem a sério duas opções: a) continuar sua trajetória cambaleante, e só por exceção modificar o status quo, de lamento e lágrima; b) aceitar a sociedade com o malfazejo e desfrutar de uma ou outra alegria fugaz, de uma quadra de esportes e de uma feijoada.

A história de que a população não delata o traficante por medo de represálias, algumas vezes mais parece uma desculpa. Ademais, medo por medo, a população também tem medo da polícia. Sobretudo porque a tática de obter cooperação através de atos de violência não é exclusiva dos bandidos.

Absurda mesmo é a estrutura e a conjuntura que propiciam o surgimento dos “Prometeus” e Robin Woods, e Zorros: de um lado pessoas oprimidas, de outro um governo déspota, ou, no mínimo, incompetente.

É triste o quadro em que afloram estes heróis. É triste vê-los em franca atividade na sociedade brasileira. Sobretudo, quando se sabe que o simples atendimento das necessidades básicas dos cidadãos seria fonte natural de rechaço à conivência criminosa e seus tentadores presentes condoídos.

Desta forma, como operadores do direito, resta-nos trabalhar com afinco no encalço desta justiça social em que o povo brasileiro não mais careça de “Prometeus” e “Robin Woods” e seus assemelhados, porque lhe bastará como mecenas a Constituição da República.

Para não fazer desfeita ao verdadeiro Prometeu Acorrentado e a seu ato de bravura, vale transcrever a resposta que deu a Mercúrio, emissário e filho de Júpiter, que tentava convencê-lo a implorar clemência ao seu algoz: “Saiba que eu não consentiria em trocar minha miséria por tua escravidão. Prefiro, sim! prefiro jazer acorrentado a este penedo, a ser o mensageiro e confidente de teu pai”.


Sérgio Humberto de Quadros Sampaio
Juiz de Direito na Bahia.

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