sexta-feira, 30 de abril de 2010

Civilização e barbárie

por Ronaldo Pereira Lima em 08 de setembro de 2004



“Nuevo bárbaro, retrasado con respecto a su época, arcaico y primitivo en comparación con la terrible actualidad de sus problemas. Esto nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también - el ingeniero, el médico, el abogado, el científico”.

(José Ortega y Gasset - Misión de la Universidad)


O problema capital da nossa época, como talvez de todas as eras, não é de ordem puramente política ou econômica, mas intelectual. Um dos nossos graves enganos é não perceber a conexão sempre existente entre as ações e os pensamentos dos homens. E neste mundo cada vez mais segregador das diferenças, o pensador, ao nascer, isto é, ao ter a consciência mais clara das coisas, sente-se deslocado e incapaz de continuar sendo o que é. Alguns, antevendo que só poderão sobreviver como lacaios subservientes da ordem estabelecida, refugiam-se na zona reservada aos medíocres e passarão a vida repetindo os lugares-comuns, as idéias pré-concebidas, os slogans políticos da moda, os juízos acríticos. Outros, mais corajosos, mesmo com a atroz consciência de serem os únicos a enxergarem em uma terra de cegos, tentarão mostrar todos os mecanismos sutis de escravidão. Os primeiros, crendo-se artífices de um mundo novo, criarão idéias torpes e levianas, sem ligação com a realidade. Pensam que é mais importante escrever a ferro e fogo os seus nomes na história do que compreendê-la; para eles destruir é criar. E toda ação é justificável à luz de procedimentos verbais. Agir é mais importante do que pensar. Estes são os novos bárbaros caracterizados por Gasset, que ao encontrarem o seu lugar confortável no grupo dos “empreendedores” tentarão esmagar as dissidências, reduzindo-as a um som que, no vácuo, não é propagado para os ouvidos de ninguém. Se não tivessem perdido há muito tempo a percepção da realidade, saberiam que aqueles que erguem campos de concentração contra pensamentos “perigosos”, estarão prontos a erigí-los também sobre a terra. Totalitarismo intelectual de um lado, social e político de outro, estão intrinsecamente unidos.

Das cátedras universitárias aos palácios de governo, dos mosteiros às escolas, o alicerce sobre o qual o ocidente se consolidou (cristianismo, pensamento racional e lúcido, artes) parece estar em ruínas. Por isso a distinção entre civilização e barbárie é, atualmente, inútil. Não há mais bárbaros a forçar os portões, eles já nos dominaram.

Este fenômeno pode ser percebido também na degradação da linguagem, que é um dos sinais mais evidentes de que uma sociedade escolheu voluntariamente o suicídio do pensamento. Aqueles que deveriam preservá-la das massificações estúpidas são, na verdade, os primeiros a promovê-las. Hoje, o nível da linguagem escrita ou falada, entre professores universitários, jornalistas, ou “escritores”, chegou aos limites intoleráveis vizinhos do analfabetismo. Em seus textos é impossível ver a continuidade, que seria natural, de um idioma que engendrou Camões e Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Olavo Bilac, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Assim, quando surge um poeta excepcional como Bruno Tolentino, que domina com delicada maestria os recursos da língua portuguesa, é taxado de beletrista e antiquado. Eu, de minha parte, jamais esquecerei o sexteto inicial de um de seus poemas perfeitos, “O Espectro”: “Não há como agarrar-te à natureza/ quando a asa da noite baixa e faz/ a sombra sobre a acha, a lenha presa/ à luz da labareda que a desfaz; /morres despreparado ou morres bem, /mas passas pela cinza, meu rapaz”. Quantos ditos “intelectuais” não preferem a esterilidade do Concretismo à beleza e significação destes versos?

É este outro obstáculo central de nosso tempo: estamos perdendo a capacidade mais elementar de comunicação. As pessoas estão divididas entre aquelas que falam e compreendem apenas um dialeto dramaticamente empobrecido e os poucos capazes de compreender o que falam e escrevem, em um idioma que a cada dia parece impenetrável. Entre estes dois grupos há uma cisão profunda.

No futuro, caso haja alguém que pense, se um historiador decidir estudar as idéias centrais desta época em que vivemos, se espantará ao ver tantos “pensadores” e “especialistas” e tão poucas reflexões verdadeiras, fruto da avaliação competente e honesta dos fatos. Em seu lugar, temos apenas indivíduos que, movidos por ideologias perversas e pueris, a beijar a face do líder do partido, se esquecem do próprio mecanismo da história que os engendra. Se o tempo os criou, ele os destruirá. Amém.

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